A UNIVERSIDADE AMEAÇADA

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Anísio Brasileiro (APC, cadeira #82)

O Brasil vive atualmente o que muitos cientistas políticos classificam como “crise da democracia” — ou “crise de representatividade”. As Universidades, inclusive nos países centrais, são afetadas diretamente pelos reflexos desta época de desencanto, de ascensão dos populismos autoritários em vários países. Três estudos recentes e importantes buscaram entender o fenômeno: “Como as democracias morrem” (Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, 2018), “Como a democracia chega ao fim” (David Runciman, 2019) e “O povo contra a democracia” (Yasha Mounk, 2019). 

São olhares sobre a apreensão de muitos segmentos da sociedade diante da possibilidade de fracasso da democracia. A ascensão de Donald Trump, o crescimento do Front National francês, da Liga do Norte e do Movimento 5 Estrelas italianos, de Geert Wilders e seu Partido para a Liberdade holandês, são aspectos do mesmo fenômeno de reação conservadora às transformações no campo dos direitos sociais, políticos e trabalhistas e dos valores e costumes. No Brasil, a lógica do governo Bolsonaro é a mesma dos populistas autoritários de direita americanos e europeus.

Dois aspectos principais devem ser considerados no processo que estamos vivendo: em primeiro lugar o feroz ataque aos direitos adquiridos, corajosamente construídos pelas sociedades. Direitos trabalhistas, direitos sociais, direitos políticos conquistados coletivamente à custa de lutas seculares. É fácil perceber que a onda conservadora se constitui como uma reação às mudanças progressistas, inclusive no campo dos costumes, aquilo que Eric Hobsbawm, em “A era dos extremos” (1994), chamou de Revolução Cultural. Trata-se de um ataque conservador cerrado que Ronald Inglehart e Pippa Norris, explicam com o que chamaram de “Teoria da Reação Cultural” (no ensaio “Cultural Backlash. Trump, Brexit, and Authoritarian Populism”, 2019). 

O segundo aspecto da reação conservadora é que as Universidades passaram a ocupar o centro do jogo político. De um lado, como alvos prioritários dos conservadores autoritários, desejosos de atacar os espaços de produção do conhecimento, de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I), de crítica social, de experimentação cultural. De outro lado, até como resposta aos ataques, as Universidades tiveram de ampliar sua capacidade de resistência, atuando para refrear a onda de desmonte na qual se viu envolvida.

História de lutas

Por que as Universidades são atacadas? Umberto Eco afirmou certa vez em um texto chamado Por que as Universidades? que as instituições superiores de ensino, pesquisa e extensão configuram um espaço onde todos falam a mesma língua. E, por isto mesmo, os problemas nelas debatidos ultrapassam suas fronteiras. Universidades se constituíram ao longo de séculos como comunidades culturais com regras próprias, como a geração do conhecimento, a avaliação por pares baseada no mérito científico, o concurso público e carreira baseada no desempenho acadêmico, a qualidade da formação ética e profissional, a pluralidade de olhares sobre o mundo diverso, além da defesa da democracia e dos direitos. São, por isto mesmo, lugares do pensamento crítico, da reflexão, das polêmicas e dos debates. Territórios do respeito às diferenças e da livre expressão, sem contestação do princípio da autoridade institucional, que jamais se confunde com o autoritarismo. 

Tudo isto foi articulado ao longo de séculos, desde o final do século XI, em Bolonha, com a sua Escola de Artes Liberais. Oxford (1096) veio em seguida disputando esta posição com Paris, escolas que atraíam estudantes do mundo. Foi um movimento de extrema beleza que se espalhou devido ao enorme prestígio que a educação adquiriu: Modena (1175), Cambridge (1209), Salamanca (1218), Montpellier (1220), Pádua (1222), Nápoles (1224), Toulouse (1229), Al Mustansiriya no Iraque (1233), Siena (1240), Valladolid (1241), Roma (1244), Piacenza (1247), Murcia (1272), Coimbra (1290), Madri (1293). E, desde sempre, as Universidades foram marcadas pelo debate, pela busca crítica da verdade: lectio (a leitura) não fazia sentido sem quaestio (o questionamento). 

A história do ensino superior no Brasil inicia-se em 1808, com as Faculdades de Direito em Olinda e São Paulo, a de Medicina em Salvador e a Escola de Engenharia no Rio de Janeiro. Todas adotaram o modelo curricular francês. O ensino superior no Brasil ganhou novo impulso em 1931, com o ministro da Educação Francisco Campos, cujos decretos, organizaram o sistema universitário brasileiro. Com a Lei de Diretrizes e Bases, promulgada em 1961, institui-se “a autonomia universitária, em termos didáticos, administrativos e financeiros”. 

A autonomia como essência

É conhecida a definição de Pierre Bourdieu para o conceito de Campo Social. Trata-se de um mundo dotado de certa autonomia, com leis e regras específicas, ao mesmo tempo em que influenciado e relacionado a um espaço social mais amplo. A estrutura do campo é como um constante jogo, no qual, cientes das regras estabelecidas, os agentes participam, disputando posições e vantagens específicas. O campo também pressupõe confronto, tomada de posição, luta, tensão, poder. As Universidades devem ser entendidas como campo social. E a autonomia como essência do seu funcionamento, o que não significa que tais instituições pairem acima da Lei, dos organismos de tutela e das suas responsabilidades acadêmicas e sociais. 

Universidades não existem sem autonomia e só assim garantem o seu papel de impulsionadoras do desenvolvimento, ao um só tempo respondendo a demandas concretas da sociedade, mas também se colocando à sua frente, abrindo fronteiras do conhecimento, com inovação e criatividade. A partir das reflexões do sociólogo Pierre Bourdieu, compreendemos que a autonomia universitária se expressa na ideia de campo científico, no qual se inserem atores e instituições. Esse campo está sujeito a lutas entre atores, “lugar de relações de força”. Nas Universidades se expressam desde os que as veem como espaço de lutas puramente sindicais – com viés fortemente ideológico e partidário – até os que as enxergam como oportunidades de negócios econômicos desconectados da sociedade. 

Associamo-nos ao pensamento de Boaventura de Souza Santos, para quem a Universidade “liga o presente ao médio e longo prazo pelos conhecimentos e pela formação que produz e pelo espaço público privilegiado de discussão aberta e crítica que constitui”. Como bem público, o patrimônio universitário precisa ser preservado e valorizado. Um projeto de país inclusivo e soberano se mede também pela importância que se concede à Universidade nas políticas públicas.

Desafios renovados

As Universidades brasileiras enfrentam neste início de 2020, pelo menos três desafios. O primeiro deles é conjuntural, diante dos efeitos perversos da pandemia de COVID-19, doença respiratória aguda causada pelo Coronavírus (SARS-CoV-2), identificado pela primeira vez em Wuhan, na China, no final de 2019. Os dois outros desafios são estruturais: a relação das Universidades com a sociedade, especificamente diante do comportamento das redes, da mídia tradicional e dos novos aplicativos de comunicação interpessoal; finalmente, a manutenção da autonomia a partir da necessidade de respeitar a comunidade acadêmica na escolha dos reitores.

Em que a pandemia desafia as Universidades? Podemos afirmar inicialmente que negar a existência de fatos, os acontecimentos históricos ou falsificá-los é um projeto de ataque à cidadania, uma tentativa de suprimir o papel do Estado na construção de uma sociedade mais justa e democrática. Estamos vivendo no Brasil, diante da pandemia de COVID-19, uma demonstração do caráter programático e conservador do negacionismo. As Universidades, mais uma vez, são diretamente contestadas — como espaços de construção do conhecimento, pela articulação da Ciência, da Tecnologia e da Inovação, pelo papel fundamental no debate dos limites éticos da busca pelo tratamento da doença. Na construção do discurso negacionista, as Universidades evidentemente estão na linha de tiro, por contestarem, por maio dos seus cientistas, falsos argumentos epidemiológicos e farmacêuticos (no caso da COVID-19). Cabe à Universidade perseverar para que prevaleça junto à Sociedade, as orientações e propostas fundamentadas na pesquisa científica mantendo-se, portanto, hoje na linha de resistência ao negacionismo.

Tecnologias da intolerância

Como proliferam os negacionismos? Como se articulam os ataques às conquistas sociais e às Universidades? O Brasil, mesmo após a redemocratização, com a promulgação da Constituição de 1988, vive um déficit de cidadania midiática. A concentração midiática apartou muitos segmentos sociais da possibilidade de propor suas visões de mundo e participar do debate político. Nos últimos anos, as redes sociais passaram a dar voz àqueles historicamente excluídos.

Com os novos aplicativos, segmentos sociais antes afastados do debate, passaram a compartilhar opiniões, protestar ou defender candidatos ou partidos. Mas as redes sociais também servem às forças antidemocráticas, autoritárias e conservadoras. As oportunidades criadas pelos aplicativos e redes sociais promovem a intolerância e o negacionismo, cujas visões conservadoras passaram a explorar essas plataformas, mesmo em regimes democráticos, o que exige da Sociedade uma discussão sobre como as democracias devem reagir.

A liberdade de informação e de expressão é um princípio democrático, uma exigência da própria democracia. As redes sociais são, a um só tempo, plataformas democráticas e passíveis de ocupação por segmentos conservadores e autoritários cujo objetivo é desconstruir a própria democracia e atacar as Universidades e instituições de pesquisa como espaços críticos. No mundo hiperconectado, além de interrelações sociais positivas, as redes sociais confrontam a verdade com as fake news, criam tensões e manipulam amplos segmentos da sociedade. 

As Universidades são e devem ser cada vez mais anteparos de defesa contra as distorções midiáticas, tanto no caso dos meios tradicionais, quanto no caso das redes sociais. Para que as Universidades tenham a capacidade de manter sua postura crítica diante de desafios desta magnitude, é absolutamente necessário que possam, no contexto da autonomia, impulsionar as transformações sociais com vistas a que as amplas maiorias tenham acesso aos bens e riquezas geradas pelo mundo do trabalho. O que exige que elas sejam capazes de enfrentar e responder, por meio do conhecimento, a um grande conjunto de desafios: manter o conhecimento autônomo num contexto globalizado, exercendo a sua responsabilidade social e ambiental, sem perder a capacidade de diálogo com o local e o global; prosseguir investindo na inovação pedagógica, de processos e produtos, nas pesquisas em áreas estratégicas, no empreendimento universitário, sem abrir mão do compromisso social; atentar para os novos perfis estudantis e às suas demandas; repensar conhecimentos existentes e gerar novos via criatividade dos que a fazem, procurando se comunicar umas com as outras e com demais instituições da sociedade.

Cabe às Universidades estruturar seus mecanismos organizacionais ao que é mais inovador em cada época, mas também se colocar um passo adiante, ousando e arriscando propostas e soluções para a comunidade. As Universidades necessitam permanecer espaços de conhecimento mundiais, sem perder a capacidade de responder às demandas locais. O que exige o respeito absoluto com a decisão soberana da sua comunidade na escolha dos gestores, notadamente dos reitores. Só assim, as Universidades poderão exercer uma governança flexível e profissional, por meio de uma moderna estrutura organizacional – ágil, eficiente, qualificada, com o uso de sistemas informacionais para a tomada de decisões.

Fortalecer a luta das Universidades

Se a autonomia da Universidade pública brasileira e demais instituições de pesquisa do País se encontra sob ameaça devido aos cortes de recursos financeiros para apoio à pesquisa, o ataque mais grave é a ruptura com a escolha dos reitores mais votados nas listas tríplices que são submetidas às consultas públicas junto à comunidade universitária. A autonomia da comunidade universitária para escolher seu dirigente máximo é absolutamente essencial para o fomento à formação qualificada dos recursos humanos, para a qualidade das atividades de pesquisa e extensão, para o exercício da governança institucional e a solidariedade internacional.

A representatividade e legitimidade dos reitores eleitos pelos pares permite que os mesmos circulem em todos os espaços universitários, submetam-se às críticas e elogios, avaliem suas decisões à luz das opiniões da comunidade, contribuindo para a livre circulação de ideias, de pensamentos e debates, condição indispensável para o exercício da autonomia universitária e da própria democracia.

A instituição universitária, pelo acúmulo de acervo de conhecimento que possui, em todas as áreas, pode e deve estar à disposição da sociedade, com vistas a propiciar a ação social, a ação de melhoria do coletivo, dos princípios da vida social. Cabe a ela, portanto, zelar para que os valores sociais se projetem e se fortaleçam para além de valores e projetos individuais.