2020: VACINAS, UMA ODISSEIA PARA O FUTURO!

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Rafael Dhalia (APC, cadeira #74)

Desde 1721, quando Jenner criou a primeira vacina, até o início da pandemia de SARS-Cov-2 em 2019, vacinas para pouco mais de 30 doenças foram aprovadas para utilização em massa em humanos. Levavam-se várias décadas entre o desenvolvimento de cada vacina, que eram basicamente desenvolvidas pelas técnicas de atenuação e inativação de vírus e bactérias. A partir da década de 70 do século passado, com o advento da Biologia Molecular, novas tecnologias permitiram o surgimento das primeiras vacinas recombinantes, baseadas em antígenos destes microrganismos. Um passo mais ousado foi dado na década de 90, com o início das manipulações de ácidos nucléicos com a finalidade de obtenção de vacinas. Novas plataformas vacinais foram estabelecidas principalmente para vírus, incluindo outros coronavírus como o SARS-1 e o MERS. Apesar da evolução inegável das vacinas baseadas em adenovírus e RNA, em termos de segurança e eficácia, essas novas tecnologias ainda eram cercadas de incertezas e desconfianças. Eis que, em 2020, um novo vírus derruba o mundo de joelhos, catapultando as novas tecnologias de uma condição de promessa para a de realidade.

Apesar de termos alcançado um número tão restrito de vacinas durante toda a História da Humanidade, considerando o grande número de doenças infecciosas que ameaçam continuamente a vida humana, 2020 foi um ano para exaltarmos e celebramos a Ciência – inexplicavelmente ainda negada, desacreditada pelo obscurantismo remanescente. Vejamos bem o tamanho deste feito. Historicamente o desenvolvimento de uma vacina requereu entre 10 e 30 anos, como são exemplos as vacinas contra a catapora (28 anos), o rotavírus (15) e a tuberculose (13). São exceções de rapidez as vacinas contra o ebola (5) e a caxumba (4). O processo é moroso pois existem pelos menos cinco (um em animais e quatro em humanos) fases de desenvolvimento: Fase pré-clínica em animais, Fases I a III de ensaios em humanos e Fase IV (vacinação em massa). Nessas fases são avaliados os antígenos, os adjuvantes, a biodistribuição, toxicidade e obviamente a segurança e a eficácia das vacinas. Pelos ritos tradicionais a sequência das etapas deve ser respeitada, e só se deve avançar de uma etapa a outra depois de análises interinas rigorosas dos resultados, que credenciem para este avanço. A última etapa de ensaios clínicos (Fase III) é considerada a mais decisiva, pois de seus resultados depende a aprovação/liberação, pelos órgãos regulatórios, para a imunização populacional (Fase IV). Uma vacina quando chega à Fase IV não significa ser necessariamente definitiva, pois o monitoramento populacional nesta fase é de extrema relevância, considerando que eventuais efeitos adversos mais graves costumam só aparecer a cada 20 milhões de vacinados. Vacinas como a da Febre Amarela continuam sendo monitoradas desde a década de 1930, e a da Dengue da Sanofi Pasteur, por exemplo, chegou na Fase IV, mas foi descontinuada para vacinação em massa, em virtude da constatação de aumento do risco de evolução para formas graves da doença, nos vacinados que não haviam contraído previamente nenhum dos sorotipos do vírus. Pode-se afirmar, portanto, que as vacinas são extremamente seguras, pois além de serem avaliadas com rigor durante todo o processo de desenvolvimento, continuam sendo monitoradas quanto a possíveis efeitos adversos, durante anos de cobertura vacinal.

Então como explicar os avanços de 2020? Atualmente (13 de janeiro de 2021), 65 vacinas chegaram às diferentes fases de avaliação em humanos, 20 delas na última fase de testes (Fase III), oito das quais estão aprovadas para uso emergencial e duas já aprovadas sendo utilizadas para vacinação em massa. De fato, um salto exponencial da Ciência, que abre novas perspectivas na produção de vacinas, incluindo a retomada para se obter vacinas que apresentaram estudos fracassados, como as vacinas contra HIV e cepas resistentes da tuberculose. Foi feito em um ano o que não se via há séculos, e 2021 pode ser ainda mais instigante, pois outras quase 200 vacinas contra SARS-Cov-2 estão em marcha. A pergunta inevitável é: como este feito extraordinário da Ciência foi possível? Em primeiro lugar, foi graças ao vasto conhecimento acumulado no desenvolvimento das vacinas, sobretudo nas últimas três décadas com o advento de novas tecnologias. Esta base sólida permitiu a rápida adaptação das plataformas, antigas e atuais, para o desenvolvimento de inúmeras vacinas contra o SARS-Cov-2. Além da bagagem científica, o grande volume de informações compartilhadas entre cientistas do mundo inteiro, assim como os vultuosos investimentos tanto de governos quanto de companhias do mercado mundial de imunobiológicos, somaram-se para ampliar esse fenômeno. Outro aspecto relevante é que o processo de desenvolvimento foi muito acelerado pela análise em tempo real dos resultados de cada fase, e pela permissão emergencial de realizar fases de forma simultânea, obviamente com base nos resultados de segurança das fases iniciais e mantida a ordem natural das mesmas. Além disto, e não menos importante, a circulação viral intensa em muitos países, permitiu uma aceleração incomum na avaliação das vacinas.

Foi possível rapidamente correlacionar participantes acometidos pela Covid-19, nos estudos populacionais, com as doses de placebo e de vacina, permitindo assim estimar em menor tempo a eficácia preliminar. O último ponto, que talvez sintetize todos, foi a necessidade urgente de dar uma resposta a um novo vírus que embora de baixa letalidade, venha ceifando diariamente milhares de vidas no mundo. Assim, tornou-se imperativa uma escolha nunca dantes nem sequer pensada, pois deixou de ser aceitável para nós, como espécie, a submissão ao ritual de um tempo médio de 20 anos para desenvolver uma vacina. E a escolha pela vida prevaleceu, com a chegada de 20 vacinas, entre as mais de 200 em desenvolvimento, nas Fases III e IV de avaliação. Algumas características, e potenciais, de cada uma dessas vacinas pioneiras são descritos nas tabelas a seguir (atualizadas em 13/01/2021), sem juízo de valor, pois todas estas, e muitas outras que virão, são necessárias ao enfrentamento da pandemia de SARS-Cov-2.

Vacinas de Material Genético

Nome

Empresa/Instituto

Tipo

Temp.*

Preço

Eficácia

1-Comirnaty

Pfizer/Biontech

RNA

-70C

150 R$

95%

Codifica a espícula inteira do SARS-Cov-2, expressa na forma de proteína de pré-fusão, ancorada à membrana plasmática celular. RNA encapsulado em nanopartículas lipídicas. Aprovada para uso emergencial nos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, União Europeia, Argentina, Chile, México, Panamá, etc. e para uso em massa, na Arábia Saudita, Barein e Suíça.

2-mRNA-1273

Moderna

RNA

-20C

150 R$

94.5%

Codifica a espícula inteira do SARS-Cov-2, expressa na forma de proteína de pré-fusão, ancorada à membrana plasmática celular. RNA encapsulado em nanopartículas lipídicas. Aprovada para uso emergencial nos Estados Unidos, Canadá e União Europeia.

3-CVnCoV

CureVac

RNA

4C

n/d**

n/d

Codifica a espícula inteira do SARS-Cov-2, expressa na forma de proteína de pré-fusão, ancorada à membrana plasmática celular. RNA encapsulado em nanopartículas lipídicas. Apesar de ter entrado recentemente na Fase III, 14 de dezembro de 2020, promete revolucionar o mercado das vacinas de RNA pois pode ser mantida 3 meses em geladeira, permanecendo estável 24 horas na temperatura ambiente.

4-AG0302-COVID19

AnGes

DNA

t.a***

n/d

n/d

Codifica a espícula inteira do SARS-Cov-2, na forma de proteína de pré-fusão. DNA purificado. Tem o enorme potencial de poder ser mantida por pelo menos 1 ano em temperatura ambiente, não necessitando de cadeia fria, o que pode facilitar bastante a sua distribuição, inclusive para as regiões de mais difícil acesso do planeta.

5-ZyCov-D

Zydus

DNA

t.a

n/d

n/d

Codifica a espícula inteira do SARS-Cov-2, na forma de proteína de pré-fusão. DNA purificado. Tem quase a mesma vantagem da AG0302-COVID19, embora o seu prazo de estabilidade em temperatura ambiente seja mais reduzido (3 meses). Seus fabricantes anunciaram sua entrega, para distribuição, a partir do primeiro trimestre de 2021.

*Temperatura de armazenamento; **Não definido; ***Temperatura ambiente.

 

Vacinas de vetor viral (Adenovírus)

Nome

Empresa/Instituto

Tipo

Temp.*

Preço

Eficácia

6- Sputnik V

Gamaleya

Ad5 e Ad26

4C

50 R$

91.4%

Codifica a espícula inteira do SARS-Cov-2, expressa na forma de proteína de pré-fusão, ancorada à membrana plasmática celular. Segmento genômico de DNA, inserido em dois vetores de replicação deficiente diferentes. O uso de dois vetores parece aumentar a intensidade, e a especificidade, da resposta imunológica induzida. Aprovada para uso emergencial na Argentina, Bolívia, Algéria, Belarus e Rússia.

7- Convidecia

CanSinoBIO

Ad5

4C

n/d**

n/d

Codifica a espícula inteira do SARS-Cov-2, expressa na forma de proteína de pré-fusão, ancorada à membrana plasmática celular. Segmento genômico de DNA, inserido no vetor Ad5 de replicação deficiente. Aprovada para uso emergencial na China, desde 25 de junho de 2020, vem sendo utilizada na imunização de militares chineses (em regime de dose única).

8- Ad26.COV2.S

Johnson& Johnson

Ad26

4C

n/d

n/d

Codifica a espícula inteira do SARS-Cov-2, expressa na forma de proteína de pré-fusão, ancorada à membrana plasmática celular. Segmento genômico de DNA, inserido no vetor Ad26 de replicação deficiente. Inicialmente avaliada em regime de dose única, iniciaram-se estudos em regime de duas doses visando aumentar a eficácia. 500 milhões de doses foram reservadas pelo fundo COVAX de distribuição gratuita.

9- AZD1222

Oxford/AstraZeneca

ChAdOx1

4C

20 R$

62-90%

Codifica a espícula inteira do SARS-Cov-2, expressa na forma de proteína de pré-fusão, ancorada à membrana plasmática celular. Segmento genômico de DNA, inserido em vetor de replicação deficiente de Chimpanzé. Acordo de transferência tecnológica com a FIOCRUZ. Vacina escolhida como prioritária, pelo Governo Federal Brasileiro, para fazer parte do Programa Nacional de Imunização. Aprovada para uso emergencial na Argentina, México, Marrocos, Índia e Inglaterra, faz parte do fundo COVAX de distribuição gratuita. Foi solicitado aprovação para uso emergencial no Brasil, para a ANVISA, em 08 de janeiro de 2021. Empresa optou por não ter lucros durante a pandemia, repassando a vacina pelo preço de custo.

*Temperatura de armazenamento; **Não definido;

Vacinas de Subunidade proteica

Nome

Empresa/Instituto

Tipo

Temp.*

Preço

Eficácia

10- EpiVacCorona

Bektop

Proteína

4C

n/d***

n/d

Peptídeos do SARS-Cov-2, conjugados em uma proteína carreadora, adsorvidos em adjuvante. Apesar de ainda não terem resultados de Fase III divulgados, a vacina já foi aprovada para uso emergencial na Rússia, desde 14 de outubro de 2020. Altamente estável, pode permanecer por mais de 2 anos em geladeira.

11- NVX-CoV2373

Novavax

Proteína

4C

n/d

n/d

Espícula completa do SARS-Cov-2, expressa em sistema heterólogo eucariótico, conjugada a nanopartículas associadas à adjuvante. O uso do adjuvante aumentou em mais de 100 vezes a intensidade da resposta imune, abrindo um novo cenário para essas moléculas no enfrentamento à Covid-19.

12- ZF2001

ZFSW

Proteína

n/i**

n/d

n/d

Domínio de ligação da espícula do SARS-Cov-2, ao receptor (RBD-S), conjugado à adjuvante. Os resultados preliminares ainda não foram divulgados.

13- CoVLP

Medicago

VLP

4C

n/d

n/d

Espícula completa do SARS-Cov-2, expressa em folhas de tabaco, apresentada na superfície de uma Partícula Semelhante a Vírus – VLP (administrada sozinha e conjugadas a adjuvantes). Vacina capaz de induzir uma resposta imunológica 10 vezes superior a induzida pelo próprio vírus, ficando também evidente o papel central dos adjuvantes no acréscimo dessa resposta.

14- S-Trimer

Clover Biopharmaceuticals

Proteína

4C

n/d

n/d

Espícula completa do SARS-Cov-2, expressa em células de mamíferos, administrada com adjuvantes. Mostrou excelente reposta de anticorpos neutralizantes na Fase I, iniciando a sua Fase III em 17 de dezembro de 2020. Apresenta excelente estabilidade, podendo permanecer 6 meses em geladeira e até um mês estável, em temperatura ambiente. Também faz parte do fundo COVAX de distribuição gratuita.

*Temperatura de armazenamento; **Não informado; ***Não definido.

Vacinas de vírus inativado

Nome

Empresa/Instituto

Tipo

Temp.*

Preço

Eficácia

15- CoronaVac

Sinovac

Vírus

4C

50 R$

50.4-65.3%

Vírus SARS-Cov-2 cultivado em células Vero, inativado com β-propiolactona e adsorvido em hidróxido de alumínio. Acordo de transferência tecnológica com o Instituto Butantan. Aprovada para uso emergencial na China, desde 28 de agosto de 2020, foi solicitado aprovação para uso emergencial no Brasil, para a ANVISA, em 08 de janeiro de 2021. O Ministério da Saúde anunciou, em 09 de janeiro de 2020, que fechou um acordo com o Instituto Butantan de exclusividade na distribuição da CoronaVac pelo SUS, para distribuição simultânea para todos os estados. Aprovada em 11/01/2021, para uso emergencial, na Indonésia.

16- BBIBP-CorV

Sinopharm

Vírus

4C

n/d**

79.34%

Vírus SARS-Cov-2 cultivado em células Vero, inativado com β-propiolactona e adsorvido em hidróxido de alumínio. Mais de 1 milhão de pessoas já se vacinaram, e a vacina foi aprovada para uso emergencial no Egito e para vacinação em massa na China, Barein e Emirados Árabes.

17- WIV04

Sinopharm

Vírus

4C

n/d

n/d

Além da BBIBP-CorV desenvolvida em Beijing, a Sinopharm desenvolveu esta segunda vacina de vírus inativado baseada em uma cepa circulante em Wuhan. Mesmo não tendo divulgado os resultados preliminares de eficácia da Fase III, a vacina foi liberada para uso emergencial na China e nos Emirados Árabes.

18- Covaxin

Bharat Biotech

Vírus

4C

n/d

n/d

Apesar de da sua recente entrada na Fase III, em 11 de novembro de 2020, a vacina de vírus inativada indiana já recebeu autorização para uso emergencial na Índia no dia 03 de janeiro de 2021. Mesmo sem a divulgação da sua segurança e eficácia, a Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC) vem negociando a compra de 5 milhões de doses para as clínicas privadas, mesmo sem o aval da ANVISA.

19- KMS-I

IMB

Vírus

4C

n/d

n/d

A quarta vacina de vírus inativada chinesa entrou na Fase III no dia 09 de dezembro de 2020. A vacina desenvolvida pelo Institute of Medical Biology, ainda não tem seus resultados preliminares de Fase III divulgados.

20- QazCovid

RIBSP

Vírus

4C

n/d

n/d

No último dia de 2020, 31 de dezembro, entrou na Fase III de testes a vacina de vírus inativado desenvolvida pelo Research Institute for Biological Safety Problems do Cazaquistão. Diante dos promissores resultados de Fase II, os responsáveis pela vacina pretendem obter a sua aprovação para uso limitado ainda no primeiro trimestre de 2021.

*Temperatura de armazenamento; **Não definido.

Quase 33 milhões de pessoas foram vacinadas com algumas destas vacinas até o fechamento deste manuscrito (13 de janeiro de 2021), e a perspectiva é que esta capacidade de imunização também acelere vertiginosamente, diante de várias iniciativas mundo afora. Não custa lembrar que as vacinas salvam diretamente três milhões de pessoas todos os anos, e outras centenas de milhões são beneficiadas pelo efeito indireto da redução da circulação de microrganismos patogênicos. É impossível imaginar nos dias de hoje um mundo sem as vacinas, onde amontoados de corpos, acometidos por doenças infecciosas, eram recolhidos das ruas e um quinto das nossas crianças não sobreviviam até os seus dois anos de idade. É certo que teremos desafios logísticos colossais pela frente, vacinar quase oito bilhões de habitantes do planeta, em regimes de duas doses, de certo não será uma tarefa trivial. Ainda existem indícios de que teremos de manter a cobertura vacinal de pelo menos 70% da população ao longo dos próximos anos, para manter a imunidade de rebanho, pois tudo nos leva a crer que assim como para a gripe, a vacinação contra o SARS-Cov-2 tenha de ser sazonal.

Tudo isto é possível e a humanidade vem mostrando que é capaz, portanto, mais do que nunca é hora de apoiar a Ciência e seus esforços homéricos para proteger nossa espécie.

Agora como cidadãos comuns precisamos também fazer a nossa parte: continuarmos acreditando na Ciência e mantermos as medidas de prevenção como o distanciamento social, higienização e uso de máscara. Para os que achavam que 2020 tinha sido um ano perdido, fica a máxima que é em momentos de crise que criamos as nossas melhores oportunidades. Que venha 2021!

Agradecimento especial à Leda Regis, pela minuciosa revisão deste manuscrito.