ARBOVIROSES E A PANDEMIA COVID-19

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Maria Helena N. L. Silva-Filha(APC, cadeira #71)Fatima Militão(APC cadeira #93)Lêda N. Regis (Cadeira #45)

As principais arboviroses que circulam no Brasil, dengue, chikungunya e Zika, apresentam uma sazonalidade caracterizada pelo aumento de casos a partir do mês de janeiro até maio de cada ano. Em seguida, o número de casos apresenta, geralmente, uma queda gradativa e estabilização que se mantém até o final do ano, como representado tipicamente no gráfico de 2019 (Fig. 1). Estas arboviroses têm notificação compulsória em razão de sua relevância para a saúde pública. Em 2020/2021, anos em que o mundo enfrenta a pandemia causada pelo coronavírus Sars-CoV-2 (Covid-19), os boletins epidemiológicos emitidos pela Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde mostram uma situação peculiar e preocupante. Os dados de dengue, cuja incidência é notadamente a mais elevada dentre aquelas arboviroses, mostraram no ano de 2019, o registro de 1.544.597 casos prováveis e 718 óbitos, o que representou um aumento de 488% dos casos prováveis, ou seja sem confirmação laboratorial, em relação a 2018. O número de casos prováveis em 2019 foi considerado o segundo maior na série histórica desde 1975, sendo superado apenas pelo ano de 2015.

Em 2020, a curva de casos prováveis é ascendente e com registros claramente superiores aos notificados no mesmo período de 2019, da 1a até a 11a semana epidemiológica (SE) de 2020, que correspondeu à semana de 8-14 março (Fig. 1). A partir da 12a SE (15-21 de março), subitamente e atipicamente, os registros começam a decrescer contrariando a tendência da curva deste ano e a tendência sazonal histórica. No período entre a 12a SE até a 29a SE, último registro feito até o boletim epidemiológico 31 da SVS, o número de casos prováveis se mantém decrescente (Figura 1). Este boletim destaca que « …esta redução pode ser atribuída a mobilização que as equipes de vigilância epidemiológica estaduais estão realizando diante do enfrentamento da emergência da pandemia do coronavírus (Covid-19), após a confirmação dos primeiros casos no Brasil em março de 2020, ocasionando em um atraso ou subnotificação para os casos das arboviroses ». O boletim menciona que a redução também pode ter sido influenciada por eventuais problemas de atualização no sistema. É importante sublinhar que, apesar da queda atípica de casos prováveis de dengue registrados a partir da 12a SE, atribuída a questões operacionais resultantes da mobilização dos serviços de saúde para a pandemia de Covid-19, o número total de registros até a 29a SE (12-19 julho) atingindo mais de 900.000 casos prováveis, uma incidência de 431 casos/100 mil habitantes, é preocupante. Resta ainda a pergunta: – Qual seria o real cenário epidemiológico das arboviroses em 2020, cuja curva até a instalação da pandemia do novo coronavírus já indicava tendência alarmante?

 

Fonte: https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/august/06/Boletim-epidemiológico-SVS-31.pdf

Este quadro revela, portanto, uma face do impacto direto da pandemia da Covid-19 no acompanhamento epidemiológico de arboviroses, como deve certamente ocorrer nos processos de notificação e atenção de outros agravos à saúde. Outro aspecto que não pode ser esquecido, é a possibilidade do aumento, previsível, da exposição humana ao vetor destas arboviroses, Aedes aegypti, como consequência direta das medidas de distanciamento social, absolutamente necessárias para mitigar a transmissão da Covid-19. A depender das condições de moradia da população, possivelmente precárias para a maioria, a permanência prolongada em casa pode favorecer a transmissão de arbovírus. A necessidade do armazenamento de água para uso doméstico ampliado pela permanência das pessoas em casa e o aumento de oportunidades para a hematofagia do vetor, pela concentração de pessoas no ambiente doméstico, implicam previsivelmente em um maior crescimento populacional do Aedes aegypti. Estudos diversos têm demonstrado que as populações de Aedes estão estabelecidas e são abundantes nos espaços urbanos de todas as regiões brasileiras, e que se trata de uma espécie bem domiciliada, reproduzindo-se e permanecendo predominantemente na morada humana. Desta forma, é possível prever que a maior permanência das pessoas em casa retroalimenta positivamente a proliferação e permanência dos mosquitos neste espaço, elevando consequentemente o risco de transmissão viral.

 

Um conjunto de situações novas, não previstas, como por exemplo, (i) o direcionamento dos agentes de saúde, de serviços de transportes, de limpeza e outros serviços para o atendimento aos atingidos pela pandemia, (ii) a concentração dos esforços para limitar o contágio pela Covid-19, (iii) a mudança de percepção em relação ao danos causados pelas arboviroses, com letalidade muito menor à do novo vírus, entre outros fatores, podem haver convergido para reduzir a busca ativa de atendimento na atenção primária e, portanto, de notificações e registro de casos no sistema de vigilância epidemiológica. Assim, este conjunto de situações relacionadas à pandemia Covid-19 tem um impacto indireto em vários campos da saúde, mas muito peculiar no campo das arboviroses em vista da drástica mudança das atividades da população e ocupação nos ambientes. Estas são observações que indicam a importância de estudos cuidadosos para avaliar a viabilidade ou não de uso dos dados epidemiológicos das arboviroses urbanas nestes anos marcados pela pandemia, em estudos comparativos futuros. Tais estudos são necessários devido à relevância destas arboviroses sobretudo nos últimos anos. Em 2014 e 2015, ocorreu a introdução dos vírus chikungunya e Zika no Brasil, desafios de grande envergadura, sobretudo considerando o quadro de hiperendemicidade pré-existente de dengue. As pesquisas realizadas de imediato no Brasil sobre estes arbovírus emergentes revelaram facetas inusitadas. O vírus Zika foi revelado como agente etiológico de nova síndrome que compromete recém-nascidos e o vírus chikungunya tem apresentado padrões de morbidade e mortalidade preocupantes em relação àqueles previamente reportados em outros países. Ambos os vírus estão associados a manifestações neurológicas agudas, como encefalite, meningoencefalite e síndrome de Guillain Barré. O vírus Zika tem sido mais desafiador e assumiu caráter de emergência internacional em saúde pela Organização Mundial de Saúde, entre fevereiro e novembro de 2016.

Os dados mostram que ainda estão sendo registrados novos casos da síndrome congênita de Zika (SCZ). Nos últimos quatro anos, no total foram confirmados 3.474 casos no País. Destes, 954 foram confirmados em 2015; 1.927 em 2016; 360 em 2017; 178 em 2018. Em 2019, até outubro, foram confirmados 55 casos, dos quais 29 foram de recém-nascidos ou crianças nascidas naquele ano; três evoluíram para óbito. Apesar do decréscimo do registro de casos nos últimos anos, diversos aspectos associados a esta doença permanecem um campo aberto de descobertas. Um vírus até então praticamente incógnito, exceto por epidemias sem destaque na África e Ásia. Tudo a desvendar. Em tempo recorde foi produzido um arsenal de conhecimentos, e muitos absolutamente inéditos no campo de arboviroses, de suas formas de transmissão e manifestações clínicas.

No campo das iniciativas voltadas ao controle de Aedes, abordagens inovadoras têm sido fomentadas e avaliadas a campo em tempo recorde, em vista da necessidade de ferramentas mais robustas para o controle do vetor. Dentre as iniciativas, destacam-se as diferentes abordagens de liberação de Aedes modificados visando a redução da transmissão vetorial, além daquelas para o desenvolvimento e testes de vacinas e exames diagnósticos. Com as medidas de contingenciamento da Covid-19, projetos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico lançados no Brasil estão naturalmente sofrendo desaceleração ou paralização, cujo impacto será necessário avaliar.

O cenário relacionado aos vírus emergentes revelados neste início do século XXI, colocam em risco e atingem, em maior ou menor escala, a população humana. Hoje a pandemia da Covid-19 é, indubitavelmente, o maior desafio em saúde pública mundial das últimas dez décadas. No Brasil, associado a este quadro, temos a convivência com importantes arboviroses mantidas pela presença constante do vetor e de outras condições que têm propiciado a manutenção da transmissão viral que, pelo menos no caso de dengue, perdura ao longo de mais de três décadas. As respostas produzidas pela ciência têm sido essenciais para elucidar questões e nortear os próximos passos, entretanto o nosso País terá o desafio de conviver e buscar soluções para um conjunto de situações complexas já existentes e para a ameaça de vírus emergentes. Neste contexto, o fortalecimento do Sistema Único de Saúde-SUS é essencial para que equipes de vigilância epidemiológica continuamente preparadas, estejam prontas para atuar nas emergências relativas às epidemias causadas por vírus emergentes, com ações rápidas e coordenadas, mantendo de forma efetiva as ações para os agravos endêmicos e reincidentes.