“O DILEMA DAS REDES NÃO EXISTE, NEM MESMO EM TEMPO DE PANDEMIA”

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Fernando Buarque(APC, cadeira #87)

Em tempos de pandemia todos passamos a conviver muito mais de perto com a família e alguns redescobriram suas próprias casas. Essas são algumas das poucas consequências boas trazidas por essa catástrofe semi-anunciada que está sendo a COVID-19.

Esta crise que revelou o óbvio em vários níveis. No federativo, um sistema mal preparado, desarticulado e que não sabe ser nem planejador e nem líder. No nível local apresentou vizinhos de porta, desconhecidos de décadas. No nível pessoal-profissional aumentou a produtividade de muitos, mas também o stress pelos muitos papéis que antes não tínhamos. Poder evitar em parte o trânsito infernal das grandes cidades brasileira foi um bônus. Mas, foram no nível pessoal-familiar as maiores surpresas. Famílias voltaram a sentir o cheiro de seus queridos (ou não), várias foram as redescobertas de coisas perdidas dentro da própria casa, e para quem não era adepto, a descoberta dos canais de conteúdo fechado (streaming). Esses canais, companheiros das noites insones, que se tornaram uma necessidade diária das altas horas. Netflix, Amazon, TeleCine e tantos outros passaram a ser o ‘remédio’ para a ansiedade, insônia e por certo, um alento justamente para aqueles que possuem o privilégio de ter, ao alcance dos dedos o mundo em notícias, filmes, séries e documentários.

Nesses 10 meses de isolamento (em dezembro de 2020) várias foram as séries que galvanizaram a atenção de multidões. Foi o caso de setembro por exemplo, quando muitos finalmente ‘descobriram’ que as redes sociais podem ser perigosas. Isso ao assistirmos o documentário “O Dilema das Redes” na NetFlix. Aliás, uma daquelas descobertas que todos já sabiam e fingiam ignorar. Claro, como tamanha comodidade, funcionalidade, e preço quase zero poderia ser ruim?! A resposta para essa “difícil questão” está em uma das próprias afirmações no documentário em lide: “se alguém não paga pelo serviço, ele/ela é o produto”. Para quem não o assistiu ainda, o documentário impressionante enfileira muito habilidosamente depoimentos de dezenas de altos funcionários, engenheiros e investidores justamente das, até então insuspeitas e diariamente visitadas, redes sociais (e.g. Facebook, Instagram, Tweeter etc). Mas afinal o que chocou tantos? A cruel constatação de que nem mesmo os criadores dessas redes conseguem mais as dominar é chocante; as criaturas efetivamente dominando seus criadores. Há depoimentos fortes lá. Por exemplo uma neurologista que entende da bioquímica do cérebro, mas não consegue convencer os filhos que as redes viciam; um executivo de uma das redes – responsável pelo crescimento dela, que não conseguia parar de usar (como usuário) sua própria cria. Enfim, uma coleção de ‘aterrorizantes’ depoimentos. E eles não por suas novidades, mas por suas proximidades do que já vivemos e não comentamos. Uma proximidade que assusta por revelar que essas redes não apenas “querem” o nosso tempo, mas “querem” mudar nosso comportamento. E em última instância “querem” nos direcionar para quem pagar mais.

E neste mundo de anúncios individualizados, o barato (nosso tempo) sai muito caros (pois vão nos transformar em quem nós mesmos não sabemos). Atenção: aqui não se está a falar de marketing ou merchandising. O que o documentário nos faz entender é que há um dilema ante todos nós: usar ou não usar (as redes sociais). Entretanto, a reflexão aqui interposta, igual a outra que fiz quando da chegada dos primeiros computadores, é que não há um dilema. Penso que todos vamos ter que continuar a usar.

Neste ponto alguém talvez se pergunte se então tudo está perdido. Bem, a minha resposta para esse questionamento é: depende. Depende de quanta reflexão cada um faz de seus padrões de uso, de quão aberto está para por exemplo não aceitar sugestões: de amizades, de assuntos para ler, e também de não mais empatizar (i.e. ‘dar’ likes, loves, hates). Sim pois as redes podem ser como serpentes se continuarmos a ser muito responsivos, flexíveis e empáticos.

Sinceramente, espero que o entendimento dos perigos bem como das oportunidades representadas pelas redes sociais seja objeto de muito debate e reflexão. Se não fizermos isto, o caminho pode até mesmo ser de uma guerra civil – como bem fala um dos comentaristas. E isto não é por causa das ‘fake news’ mas pelo mecanismo intrínseco de funcionamento das redes que alegadamente tenta nos oferecer o que queremos, quando na verdade nos entrega um mundo artificial, em bolha. Um mundo esvaziado de verdades e repleto de segundas intensões. Portanto, o dilema representado por usar ou não (as redes sociais) pode facilmente deixar de sê-lo se “as redes” voltarem a ser usadas como ferramentas. Caso contrário, aí o dilema se concretiza inexoravelmente, pois nós é que seremos as ferramentas.