A INTERIORIZAÇÃO RECENTE DA CIÊNCIA NO BRASIL: O CASO DA UNIVASF

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Helinando Pequeno de Oliveira (APC, cadeira #19)

Introdução

A expansão recente das universidades públicas brasileiras em direção ao interior teve partida em 2004, com o início das atividades da Universidade Federal do Vale do São Francisco, que passou a atuar em três Estados da federação: Juazeiro – BA, Petrolina – PE e São Raimundo Nonato – PI. Tive a oportunidade de ser mais um jovem naquele grupo de pouco mais de cem professores contratados pelo primeiro concurso e que decidiram apostar o seu futuro profissional na construção de uma nova Universidade Federal no País. E este relato de conquista, desafios e frustrações representa um pouco desta luta que busca levar a produção de conhecimento para além dos centros consolidados.

História

Ao contrário do que se observa em Universidades que foram desmembradas de campi avançados, a Univasf surgiu literalmente de uma folha de papel, de um decreto. Seu início efetivo ocorreu em um concurso para praticamente todas as áreas de conhecimento que aconteceu num domingo de maio (Dia das Mães de 2004). Em agosto do mesmo ano, os professores já chegavam à Petrolina, Juazeiro e São Raimundo Nonato para constatar o óbvio: nada existia. A reitoria funcionava em uma casa no centro da cidade de Petrolina, e isto era tudo. Não existiam laboratórios, estudantes, dependência física alguma. E nós, jovens professores, chegávamos movidos pelo sentimento de fazer ensino, pesquisa e extensão. A pergunta era óbvia… Como fazer? As aulas foram iniciadas em espaços cedidos por outras instituições. Nem ar-condicionado tínhamos no campus de Juazeiro, o que levou à suspensão das aulas no período da tarde por alguns meses. O verão sertanejo é forte, como tudo por aqui.

Era possível perceber claramente em toda a região o orgulho da população com a conquista de uma nova Universidade. Também era bonito ver o amor do povo para com o rio São Francisco. Todavia, o esgoto ainda desce a céu aberto em plena orla de Petrolina, correndo livre em direção ao rio… Da mesma forma, o orgulho pela Universidade mostrou também razões que não chegavam a ser tão nobres. O primeiro argumento mais chocante era um consenso existente de que a Universidade teria aquecido o mercado imobiliário da cidade. Ou seja, muitas pessoas estavam preocupadas com as rendas de aluguéis e venda de terrenos…O segundo argumento, todavia, chega ainda a ser pior que o primeiro: as pessoas tinham completa falta de expectativas para além dos diplomas para os filhos da terra. Ficou claro que o desejo de uma grande parte da população (e até mesmo parcela significativa da comunidade acadêmica) era de que estávamos chegando à cidade como uma grande fábrica de diplomas. As pessoas entendiam que ao invés de mandar seus filhos para as capitais, eles poderiam ficar na cidade, entrar na instituição e sair como médicos e engenheiros. A leitura equivocada de que a Universidade é uma grande escola de ensino superior e que se resume a quadro, giz e livros didáticos passou a ganhar força dentro da própria instituição.

E este conceito virou prática porque precisávamos construir os campi (o que no entender das pessoas eram as salas de aula e os laboratórios de ensino). E a prioridade exacerbada para o ensino inibiu que a pesquisa e a extensão crescessem da forma como deveriam (a tão propagada indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão).

Como físicos, precisávamos improvisar pêndulos com pesos e cordas de pescar para nossas aulas de física experimental. Até funcionava para as aulas práticas, mas daí a fazer pesquisa com isto, havia uma grande distância. Particularmente, vim para a Univasf com a intenção de trabalhar com nanotecnologia. E por vezes tive vergonha de comentar sobre os meus planos, pois a resposta sempre era a mesma: “Aqui só dá certo se for uva, manga e bode. Mude a sua pesquisa”.

Estava claro que as pessoas não entendiam qual era o papel (para além do diploma) da Universidade Pública no Sertão nordestino.

O clima continuou a ser este, de prioridades para o ensino e de poucas ou nenhuma oportunidade para a pesquisa e extensão. Esta foi uma ducha de água gelada para os jovens doutores que tentavam iniciar uma vida acadêmica na Univasf. Eles começaram a perceber que para continuar seus trabalhos deveriam regressar para as instituições de origem, afinal construir ciência no Sertão não seria tão fácil quanto imaginávamos. E teve início a migração de colegas em direção às instituições que forneciam melhores condições para a realização de pesquisa. Claramente, na Univasf, isto não era prioridade.

No entanto, existiam ainda aqueles jovens que resistiram e tentaram mudar o “clima” institucional. Eles precisavam iniciar suas carreiras acadêmicas e viram uma oportunidade na conjuntura nacional que se mostrava para aquele momento.

O momento singular do fomento à ciência no Brasil (2004-2010)

O momento de criação da Univasf e seus primeiros anos de implantação coincidiram com um período (2004-2010) em que o Brasil viveu seu melhor momento para o fomento à ciência e tecnologia de nossa história recente. Esse foi o momento em que eram abundantes os editais de pesquisa no CNPq, FINEP, CAPES, FACEPE e FAPESB. Estas chamadas seguiam desde níveis de financiamento típicos de chamadas do Universal – CNPq (algumas dezenas de milhares reais) até chamadas de editais multiusuários de milhões de reais no CT-Infra da FINEP, passando por editais temáticos de médio porte no CNPq – como a chamada para jovens pesquisadores em nanotecnologia.

Entendemos que aquele momento era o de arriscar propostas em todas as chamadas possíveis (obviamente com o “não” já sendo garantido). Estávamos assumindo a estratégia de forçar a demanda por espaços para a pesquisa. Com a aprovação dos equipamentos demandaríamos espaços.

Naquela época, ainda dominava a ideia de que a pesquisa deveria ser feita nos laboratórios de ensino, no espaço livre entre as aulas. Contra isto, tínhamos a estratégia do bode na sala, que era muito simples. Montar a infraestrutura e mostrar que não caberia num laboratório de ensino. E os resultados positivos começaram a aparecer… E os grandes equipamentos começaram a chegar. No entanto, com quase três anos de Universidade, tudo o que tínhamos era uma sala de 20 metros quadrados dividida por seis pesquisadores.

A criação do primeiro instituto de pesquisa da Univasf

Há uma distinção clara entre centro universitário e universidade, e isto jogava a favor do reconhecimento da importância da pesquisa na Univasf. Logo começaram os movimentos para criação de mestrados. Entendemos que era chegado o momento de criar o primeiro instituto de pesquisa na Universidade e dar este passo rumo à primeira pós-graduação. Graças a uma diligência da CAPES (quando da avaliação da proposta) surgiu o comprometimento institucional com a criação do Instituto de Pesquisa em Ciência dos Materiais (primeiro Instituto de Pesquisa da Univasf). Inaugurado em 2008, foi o primeiro espaço na Universidade totalmente dedicado à realização de pesquisa em novos materiais. Depois de quatro anos, pudemos enfim tirar os equipamentos instalados em salas de aula e em bancadas improvisadas e adentrar em um espaço físico dedicado à pesquisa em física de materiais. Com isto, tivemos aprovado o primeiro mestrado da instituição (Ciência dos Materiais) e formamos o primeiro mestre antes mesmo que saísse o primeiro graduado das Engenharias. Mais de dez anos depois conseguimos melhorar o conceito do curso para quatro e habilitá-lo a funcionar com a oferta de doutorado. Estamos prestes a titular os primeiros doutores da Univasf, formados na beira do rio São Francisco, fazendo nanotecnologia. O perfil da instituição mudou bastante nestes 16 anos. Além do instituto de pesquisa em ciência dos materiais existe também o Instituto de Pesquisa em Substâncias Biotivas. Atualmente, funcionam 18 programas de pós-graduação na instituição, com a participação de coordenadores de pós-graduação como conselheiros do Conselho Superior (Conuni) – acredite ou não, este tema foi fruto de uma longa disputa política ao ponto de definir uma eleição para reitor.

O futuro da pesquisa e pós-graduação no interior

E nesta roda gigante do apoio à ciência e tecnologia do País, chegamos a 2021 à procura do fundo do poço (esperando que ele tenha chegado). O processo de desinvestimento afeta especialmente as instituições e programas de pós-graduação mais frágeis. O histórico de pouco apoio institucional da Univasf aos seus programas de pós-graduação coloca sobre os servidores uma carga excessiva para o sucesso de seus programas de pós-graduação.

É esperado de uma instituição o apoio para ações comuns de pesquisa e pós-graduação (participação em bancas, tradução de artigos, pagamento de taxas de publicação, apoio na compra de insumos) como uma forma de quebrar assimetrias entre grupos de pesquisa. Isto significa que deve existir orçamento para a pasta de pesquisa, que não pode ficar restrita ao Proap (que mesmo assim segue tantas vezes devolvido à CAPES). O investimento na pesquisa precisa ser uma atribuição mútua (da busca incessante do pesquisador nas agências de fomento e também do papel facilitador da instituição) e neste ponto fica claro que ainda temos uma herança maldita de que a pesquisa na Univasf é por conta e risco de quem ousa fazê-la.

E para complicar, em tempos de vacas magras, nunca foi tão real o ditado popular que diz: “Pirão pouco o meu primeiro”. Da estratégia de sobrevivência dos cursos de pós-graduação a nível nacional, o corte acontece nos cursos nível 3 e 4 (baseados em critérios de “meritocracia”). O fato é que a grande maioria dos cursos da Univasf é conceito 3. Sem a possibilidade de implementação de bolsas nestes cursos haverá uma queda drástica na qualidade dos trabalhos, pois os estudantes deixarão de ser “dedicação exclusiva” para realizar suas atividades nos tempos vagos. Fica clara a vulnerabilidade destes cursos que ainda não conseguem se consolidar, sendo os primeiros candidatos a serem cortados nesta seleção natural ditada pela escassez de recursos públicos. Da mesma forma que ocorreu no princípio, está aberta a porta para a evasão de cérebros em direção às pós-graduações 6 e 7, que são aquelas que podem resistir por mais tempo à esta longa “estiagem”.

Apesar de tudo o que foi colocado, desistir nunca será uma opção a ser considerada. A Caatinga nos ensina o real significado do que é resistência e resiliência. Apesar de permanecerem completamente despidas de folhas por todo o ano, basta a primeira chuva para que as folhas e os frutos brotem em todo o seu vigor na vegetação retorcida e cheia de espinhos. A sobrevivência da pós-graduação no interior do Brasil em tempos de crise depende de parcerias sólidas com centros consolidados e redes de pesquisa. A participação em INCTs, a colaboração com instituições no Brasil e exterior, a parceria público-privada… Todas estas opções são fundamentais para que possamos sobreviver até a primavera. O Sertão nordestino faz ciência, forma mestres e em breve também doutores. Para muito além da manga, da uva e do bode, fazemos nanotecnologia, temos parceiros dentro e fora do Brasil que acreditam em nosso potencial, já espalhamos sementes por todo o planeta. Temos a convicção que na hora certa as folhas surgirão, poderemos sair dos casulos em que estamos escondidos por baixo da terra. A ciência sertaneja aprendeu com a Caatinga a esperar a sua primavera. Até lá, resistiremos.