REFLETINDO SOBRE O NOVO SARS-COV-19 FRENTE A VELHAS AGENDAS MÍNIMAS DE SUSTENTABILIDADE NA ESCALA LOCAL.

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Edvania Torres Aguiar Gomes (APC, cadeira #62)

O conhecimento nos instrui sobre o significado das coisas e dos processos e nos revela os movimentos e as possibilidades de reconectar vínculos, inclusive aqueles aparentemente perdidos e ou invisibilizados no presente e ao longo da história. Parte-se do pressuposto que, enquanto produção social, o conhecimento é construído a partir do real, com a incorporação de novas determinações. Este movimento contínuo ao longo da história, na relação espaço-tempo, realiza-se dialeticamente tanto compreendendo a escala geográfica global do sistema-mundo até a escala mais próxima, no lugar. Mas também no âmbito das abstrações que, por meio do conhecimento refletem a materialidade dos fenômenos, ao identificar o singular, o particular e o universal reafirmando a inexistência de fenômenos fora de uma totalidade presente na história da sociabilidade.

A pandemia como a derivada do SARS-CoV-19, emergente no final do ano de 2019, refletiu fortemente o imbricamento dessas escalas e conexões com a sua propagação acelerada através do mundo mergulhado no meio técnico-científico-informacional orquestrado pela Globalização. A rapidez, a velocidade e potência da propagação de contágio e letalidade do SARS-CoV-19, independentemente do local da sua origem afetaria “aldeia global”, confrontando a Globalização como fábula e a desnudando em seu caráter mais perverso, como já anunciado por Milton Santos na sua obra “Por uma outra Globalizaçãoi”, incitando buscas de caminhos para uma outra Globalização possível, como nos inspira o autor.

A mobilidade dos objetos, das coisas e das pessoas cruzam os cantos do mundo, enaltecendo as conquistas crescentes das técnicas e tecnologias, evocando a busca pelo dia eterno, mas é na esfera do real, na escala do singular, do local que as pessoas vivem, com as fraturas das desigualdades e precariedades no atendimento às suas necessidades vitais e que dá sentido à vida, que uma pandemia aterrissa em meio a mobilidade “escancarando” a perversidade de há muito vivida por alguns grupos humanos em suas comunidades e países.

Isto tudo dentro da Globalização marcada pela unicidade como modelo único de compressão do tempo e momentos, como motor único e de cognoscibilidade do planeta, ou seja, uma estrutura em escala global, regida por determinações globais, com uma homogeneização das técnicas e tecnologias que possibilitam a instantaneidade das ações de um mundo integralmente conhecido e que marcha para uma finança universal determinando a todo o globo uma mais valia e uma humanidade desterritorializada, com o falseamento de uma cidadania universal.

As mesmas características que compõem o discurso único da consagrada Globalização enquanto fenômeno, resultam em seus maiores desafios para o enfrentamento do vírus e, mais ainda, comprometem inercial e paradoxalmente a saúde do modelo de desenvolvimento capitalista que a sustenta em suas políticas neoliberais e pacotes político-econômicos vigentes, por si, já em crise.

O mundo se altera ao longo da história, principalmente em virtude da variação do valor das coisas de acordo com o proveito que dele se possa extrair, alterando processos nas relações estabelecidas entre os homens e desses para com os objetos e coisas que o cercam, culminando em crises em intervalos de tempo mais ou menos longos.

Decorrido quase um ano da pandemia e sem estimativa de tempo para a sua superação, constata-se o aprofundamento da crise econômica estrutural do capital no modelo econômico adotado, -à época já em gestação-, precipitado por medidas de restrição de mobilidade em todas as escalas do global ao local, adotadas para conter o contágio e mortes por esse vírus. A pobreza e a fome espreitam desafiadoramente à humanidade, com o agravamento da pandemia e a crise econômica. Isto, não obstante quase um século das primeiras denúncias mundialmente reconhecidas realizadas por Josué de Castro, na sua obra “Geografia da Fome” e estudos correlatos, da fome como consequência da política de desenvolvimento econômico instituída como modelo universal.

Os estudos desenvolvidos pelo FMI e outros organismos apontam riscos e perdas na economia, inicialmente comparados à crise de 2008, e pela sua extensão espacial e de tempo, já comparáveis à depressão de 1929. A quebra de grandes cadeias produtivas internacionais, como companhias aéreas, segmentos do turismo e serviços, dentre outras, até nas escalas nacionais e locais, de pequenos estabelecimentos e negócios, vem acelerando o aumento exponencial de desempregados e ampliando o número de pobres e miseráveis.

As dificuldades para atendimento das demandas sanitárias mínimas frente a pandemia, estampam a perversidade do impacto das políticas neoliberais das tendências do desenvolvimento capitalista, no âmbito dos ajustes estruturais aplicados pelos governos, particularmente, dos países em desenvolvimento com as medidas de desmantelamento e privatizações dos serviços de saúde pública, água, energia elétrica, educação, bem como aumento da flexibilização e precarização do trabalho, além do desemprego e não emprego para os jovens de forma massiva. Estas questões em decorrência do modelo de desenvolvimento do capitalismo em curso, são agravadas pela forma como se dá a apropriação do espaço pela Globalização já mencionada, ampliando a escassez do acesso aos serviços básicos e essenciais à vida, a divisão social do trabalho, a concentração de renda, a exclusão social e a crise sanitária.

As consequências provocadas pelo SARS-CoV-19 mostram a ausência de prioridades das políticas públicas de cada país no que concerne à sustentabilidade ambiental, tão evocada nos discursos, compromissos e protocolos oficiais. Um simples debruçar sobre os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, ONU, em um confronto com o mínimo estabelecido pela OMS para o controle profilático e/ou tratamento sanitário para combate ao SARS-CoV-19 revela enormes dificuldades. Esta pandemia tem desafiado a soma de esforços e insumos para o seu enfrentamento considerando o tempo veloz e inaudito com que esse vírus se dissemina e se metamorfoseia, articulando sob a forma de crise em rede em fluxo contínuo, afetando todas as formas de vida societárias da Terra.

A ideia dos tempos desiguais de produção dos objetos e coisas e principalmente o necessariamente mais lento para recuperação e manutenção da vida em suas diferentes formas e processos reacende a preocupação com as prioridades em curso e investimentos em perspectiva. Todo este processo impulsiona questões relativas a quanto tempo dura o investimento em educação, ciência e conhecimento para que se possa o mais rapidamente possível desenvolver mecanismos que possam salvar vidas. Tudo exige tempo, um tempo requerido é o veloz, mas essa contraposição revela que soluções necessitam tempos lentos para a construção de investigação, de respostas.

O todo mesmo de cada lugar, de cada recorte inserido no mudo globalizado e interconectado é movido por dinâmicas, por movimentos contraditórios, tais como, tempos lentos e rápidos, inovações tecnológicas e as heranças culturais, riqueza e pobreza, abundância e escassez, homogeneidade e heterogeneidade, locais de fragmentação, lugares e hierarquia. Cada realidade exige uma compreensão particular mesmo estando em uma rede global. Um momento como este reforça o compromisso na formação de futuros pensadores para atuar criativamente e de forma inovadora. Os diálogos interdisciplinares e interculturais realizados neste tipo de iniciativa proporcionam a transferência de conhecimentos e experiências. Como afirma Yves Lacoste, “a mudança de escala corresponde a uma mudança do nível de análise” (LACOSTE, 1996, p.62). Em tempos de Globalização a questão escalar é central neste debate, pois trabalhar o local e o global demanda visões, análises e ações distintas, apesar das conexões que existem entre essas dimensões.

Um convite à aproximação na escala local do vivenciado na paisagem das metrópoles com ênfase no Recife, descortina processos de flexibilização e precarização do trabalho por meio dos entregadores de alimentos e mercadorias no período de isolamento social da pandemia, na esteira da “uberização” já instalada. A flexibilização plena do trabalho pelo empreendedorismo é um dos setores marcados por tempos velozes foram impactados se renderam e rendem ao tempo lento imposto por essa pandemia. Flexibilização que muda as relações de trabalho, que desprotege, que informaliza e rompem conexões processos com as possiblidades de dar respostas as necessidades essenciais fundamentais. Recife articulada ao mundo, como tantas outras cidades, que banaliza o trabalho humano.

Essas paisagens mergulhadas numa invisibilidade deliberada, oblitera a possiblidade de se ver o todo. Por exemplo, numa situação de crise como esta, inclusive de mobilidade de coisas e mercadorias, os trabalhadores invisíveis surgem em cena, mas os canais de comunicação não lhe dão destaque necessário, como contraposição ao discurso único da aldeia global homogeneizadora do meio técnico-científico informacional. A produção no campo que não aparece na mídia é quem segue atendendo às necessidades essenciais de alimentação, por meio da pequena produção e da agroecologia. Em países marcados pela política de exportação de grãos e monocultura da soja e palmas, isto é naturalizado, não sendo destacado como um avanço da tecnologia do conhecimento, do trabalho e da ciência, em pequena escala e mais sustentável. Ou seja, da resistência, como uma outra Globalização possível. A interdependência do urbano com o rural necessita ser divulgada e amplamente reconhecidas, como já afirmado há um século por Gilberto Freyre, Manoel Correia de Andrade e Nelson Chaves, em seus relevantes estudos. O campo acolhe levas de moradores que para lá se deslocam com o anseio de espaços amplos e melhor qualidade de vida ou ainda, em busca de “escapar” às densidades humanas, aglomerações, e ausência de possiblidades de desfrutar espaços públicos abertos e ou de comercialização regulada como os shoppings centers. Ou seja, o campo e os espaços rurais viram espaços idílicos de segunda residência, carecendo novas formas de compreensão.

Essa face da perversidade se revela no cotidiano que separa, segrega os que podem se isolar dos que não podem. Dos que tem casa para se isolar, dos que moram em lugares que permitem um distanciamento, dos que não podem lavar as mãos porque não tem água, os que não podem sobreviver porque os locais públicos onde subsistem estão vazios. Ou aqueles que sucumbem sem coragem de revelar que não podem sobreviver se as repartições e os estabelecimentos fecham. É a fome do silêncio que se insere contemporaneamente na geografia da fome do Josué de Castro.

Aos que seguem com seus trabalhos remotamente em seus lugares de moradia, primeira ou segunda residência, estão pouco a pouco se subordinando a uma nova pedagogia desafiadora que mais oprime pelo formato lógico do trabalho morto (pacotes de conhecimento mediados pela máquina, gerando arquivos de aula como trabalho morto, por exemplo), como já ocorre com a revolução 4.0 (objetos se comunicando entre si) que em nada contribui para a autonomia do sujeito, conforme Paulo Freire já nos ensinava há mais de 50 anos.

Quase três séculos depois que a epidemia do Colera morbus atingiu o Recife (1856 e 1863), contaminando indistintamente a sua população, conforme bem descrito por Gilberto Osorio de Andradeii (1980) quando se urgiam medidas sanitárias e o investimento em mais estudos e pesquisas, o Recife enfrenta novamente esta ameaça face a Covid-19, sem plano de desenvolvimento a altura dos seus quase 500 anos de existência. Frente à Covid-19 emergem evidências incontestáveis que nos assemelham ao quadro estudado por Saturnino há cem anos atrás, como a elevada densidade dos aglomerados, bem como insuficiência no abastecimento de água e esgoto. É fundamental aproveitar a oportunidade desta pandemia para recuperar o urbanismo sanitário.

Neste quadro, é difícil o acatamento às orientações mínimas de higienização e prevenção para evitar a disseminação da Covid-19 no século XXI. Sem água como lavar as mãos, e se higienizar, sem esgotos para onde vão os resíduos? Como ter isolamento efetivo e eficaz se 72% dos domicílios dos aglomerados urbanos não tem espaçamento entre as moradias? Como enfrentar a crise de sobrevivência se apenas 0,9% dos moradores dos aglomerados subnormais tinham rendimento domiciliar per capita de mais de cinco salários-mínimos, percentual que era de 11,2% nas demais áreas? Os aglomerados subnormais da Região Metropolitana do Recife, de acordo com o IBGE (2010)iii estão disseminados no espaço metropolitano, com um padrão geral predominante de adensamento entre as construções e construções de um pavimento, sendo a metade deles acessados por becos ou travessas (45%). O urbanismo envolve também a educação e o incentivo de princípios de higienização estabelecendo culturas de boas práticas. Um dos grandes desafios está na geração de empregos e ocupação dos jovens de 15 a 29 anos, que representam quase 25% da população que não estão ocupados no mercado de trabalho e nem estudando ou se qualificandoiv.

O grande dilema para os processos de intervenção profissional científica, acadêmica e política neste contexto exige construir propostas de interpretação da vida social sem romantizá-las e sem alienação, que permita a construção do conhecimento no social e no individual (sem perder a particularidade), privilegiando as dinâmicas que revelam o movimento da vida, as classes, processos e das lutas. Não há uma receita para uma resposta universal para resolver os problemas de cada realidade local, embora o problema da covid seja universal. Existe em cada recorte de realidade, uma especificidade e uma singularidade que precisam ser trabalhadas. Por tudo isto, é imprescindível identificar escalas de aproximação que focalizem nos lugares onde se constrói a vida cotidiana, os processos-disponibilidade-acessos-restrições por meio dos quais se transformam as necessidades humanas em respostas para satisfazê-las, e no entorno das condições que dignificam a vida de sociedades e metabolizam recursos e práticas para conservação e ou preservação da vida no planeta.

Referências bibliográficas

i SANTOS, Milton. Por uma outra Globalização: do pensamento único à consciência universal. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.

ii ANDRADE, Gilberto Osório de. A Cólera-morbo- um Momento Crítico da História da Medicina Em Pernambuco. Recife: Massangana, 1986.

iii IBGE, Censo Demográfico 2010 – Aglomerados Subnormais – Informações Territoriais” (acessível em https://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/

iv IBGE,PNAD. 2018

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