UM OUTRO MUNDO É POSSÍVEL? SIM, FORTALECENDO OS 17 ODS

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Anísio Brasileiro (APC, cadeira #82)

Final de dezembro de 2019, cidade de Wuhan, China. O mundo toma conhecimento do aparecimento de um vírus que ataca o aparelho respiratório das pessoas. Mas só percebemos a gravidade do problema a partir dos meses de janeiro e fevereiro de 2020, quando a Covid-19 aparece em Bergamo, na Itália e se alastra rapidamente pela Europa e atinge os Estados Unidos. Era o início da maior crise sanitária que o mundo já conheceu, com a pandemia chegando a todos os continentes, matando milhões de pessoas desde aquele momento até os dias atuais.

Esta crise sanitária ocorre em um contexto caracterizado pela urbanização planetária, em um território mundial altamente conectado por fluxos de pessoas e mercadorias, em uma economia que já vinha gerando imensas desigualdades expressas pela pobreza, desemprego e violências de toda natureza. Se a Covid-19 atinge todas as pessoas e classes sociais, as pesquisas e observações já mostram que são mais atingidos os segmentos de maior vulnerabilidade econômica e social, concentrados em áreas carentes de infraestruturas básicas, sem acesso à saúde pública, saneamento, habitação, transporte. A Covid-19 veio escancarar de vez as imensas desigualdades econômicas e sociais que assolam o planeta.

A grande questão que se coloca para todos nós, é sobre o que nos espera, uma vez superada a pandemia atual e, conforme previsões de muitos especialistas, diante de possíveis novas pandemias. Impõe-se a indagação: que outro mundo seria possível, diferente deste que vivemos hoje, tão injusto e desigual?

O ponto de partida em busca de respostas talvez seja admitir que o futuro pós-pandêmico já começou. Sabemos que o surgimento da pandemia guarda fortíssima relação com os desequilíbrios ambientais que vêm ocorrendo no contexto da globalização e da ação predatória dos humanos sobre as condições do meio ambiente, das florestas, rios, mares e espaços públicos cada vez mais degradados ou privatizados. Diante desta premissa, ainda cabe perguntar: sob quais condições um outro mundo é possível?

Eis o tema que vem sendo debatido há 20 anos pelo Fórum Social Mundial e que tem nos motivado nas atividades acadêmicas e militância política. Voltei a ler Henri Lefebvre que, em sua obra magistral Le droit à la ville (1968), celebrada em todo o mundo, promove pela primeira vez a temática do “urbano” (urbain) ao posto de “bem supremo entre os bens” (bien suprême parmi les biens). Lefebvre deixava claro, há 50 anos, a importância do direito de todos à cidade. Mas como ter acesso aos bens e serviços que o capitalismo oferece nas cidades, quando grande parte da população ainda vive na mais extrema pobreza? É justamente sobre o tema central da pobreza no mundo que a economista francesa Esther Duflo dedica suas pesquisas em Le développement humain. Lutter contre la pauvrété (2010), tendo recebido, por esses estudos empíricos, o Nobel de Economia em 2019.

É legítimo afirmar, a partir de Levebvre e Duflo, que pensar em um outro mundo, mais igualitário e justo, significa lutar para erradicar a pobreza em escala mundial. Perspectiva que reitera a importância do fortalecimento das decisões tomadas no quadro de organismos multilaterais, como as Nações Unidas, que durante as comemorações dos seus 70 anos, em 2015, aprovou os 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (conhecidos desde então pela sigla 17 ODS), com 169 metas e indicadores a serem atingidos em 2030. Hoje, cinco anos já passados, em plena pandemia, é essencial discutirmos como a Covid-19 impactou os 17 ODS, que têm justamente na luta pela erradicação da pobreza seu objetivo número um, em torno do qual todos os demais se articulam.

O relatório produzido pelas Nações Unidas (versões em inglês e francês: The sustainable development goals Report 2020, Rapport sur les objectifs du développement durable 2020) ressalta as dimensões econômica, social e ambiental dos ODS, e alerta que, para serem atingidos, os objetivos exigem uma transformação dos sistemas financeiros, econômicos e políticos que regem nossa sociedade, a fim de garantir direitos humanos para todas e todos, assim como requer uma imensa vontade política e uma ação ambiciosa de todas as partes envolvidas.

O relatório mostra que antes da pandemia estavam sendo observados alguns avanços limitados, a exemplo da proporção de crianças e jovens não escolarizados (que se reduziu no mundo), a melhoria no acesso a água potável com segurança, assim como o progresso na representação das mulheres no mundo do trabalho. Todavia, o balanço é que o conjunto dos objetivos não caminhava bem, sendo praticamente impossível chegarmos em 2030 com os objetivos realizados. Persistia, portanto, antes da pandemia Covid-19, um quadro permanente de desigualdades.

O relatório analisa dados mundiais de até meados de 2020, portanto já sob efeito da pandemia, e mostra que os impactos (a serem vistos de forma integrada) das dimensões sociais (ODS 1 a 6), econômicas (7 a 11) e ambientais (12 a 17) sobre as condições de vida das pessoas a nível mundial só se agravaram, com milhões de crianças paralisando seus níveis de escolarização e milhões de pessoas atingindo os mais altos graus de pobreza no mundo.

Antes da pandemia da Covid-19, quatro bilhões de pessoas não se beneficiavam de nenhuma forma de proteção social (2016), menos da metade da população mundial tinha cobertura de serviços de saúde essenciais (2017), os jovens trabalhadores tinham duas vezes mais riscos de viver na extrema pobreza que os trabalhadores adultos (2019), 144 milhões de crianças tinham algum tipo de retardo no crescimento (2019), as projeções indicavam que mais de 200 milhões de crianças continuariam sem escolarização em 2030, as catástrofes naturais em 63 países provocaram perdas econômicas de 23,6 bilhões de dólares (2019), exacerbando a pobreza.

Em 2020, a Covid-19 agravou este quadro de desigualdades sociais e de gênero: mais de 71 milhões de pessoas se deslocaram para a extrema pobreza, as crianças foram duramente atingidas na medida em que cerca de 70 países interromperam seus programas de vacinação, o fechamento das escolas impediu 90% dos alunos de continuarem seus estudos, a alternativa do ensino remoto estando incessível para pelo menos 500 milhões de alunos; a pandemia aumentou mais ainda as desigualdades de gênero, com as mulheres sendo fortemente atingidas pela violência, pela sobrecarga doméstica, estando também na linha de frente nos serviços de saúde.

Estas condições sociais e de infraestruturas se agravam nas cidades que, embora ocupem apenas 2,6% da crosta terrestre, abrigam mais de 50% da população mundial, geram mais de 80% do PIB mundial e usam 75% dos recursos naturais do mundo. A ONU estima que a população aumentará para 9,6 bilhões de pessoas em 2050, a maior parte desse crescimento ocorrerá nas cidades, cujas áreas urbanas abrigarão 66% da população global até 2050 (Davos, 2020). Neste contexto, antes da pandemia da Covid-19, quase 800 milhões de pessoas não tinham acesso a eletricidade, apenas metade da população urbana mundial tinha fácil acesso ao transporte público, em geral de má qualidade (superlotados e com elevados tempos de viagem), cerca de 2,2 bilhões de pessoas não tinham acesso a água potável com segurança (2017), com 4,2 bilhões de pessoas estando sem acesso a saneamento (2017). Durante a Covid-19, 3 bilhões de pessoas não tinham instalações essenciais em casa para lavar as mãos, e somente 65% das escolas primárias possuíam equipamentos de base para lavar as mãos. Sabemos que esta é uma condição essencial para se defender do vírus, assim como a prática do distanciamento social, impossível de se efetuar em áreas habitacionais onde milhares de pessoas moram em condições precárias. Este quadro se agravou com a queda do crescimento industrial e das atividades de serviços afetadas pelos lockdowns praticados por países e cidades ao longo do ano.

À crise econômica e social se soma o problema ambiental, pois antes da Covid-19 o mundo continuava a utilizar recursos naturais de maneira não sustentável (os resíduos eletrônicos aumentaram de 38%, mas menos de 20% são recicláveis), a acidificação dos oceanos ameaça o meio ambiente e, por conta das queimadas e desmatamentos das florestas, aumentou o tráfico e a presença de espécies selvagens nos ambientes urbanos, contribuindo para a propagação de doenças infecciosas, além de perturbar os ecossistemas naturais.

Este quadro dramático apresentado pelas Nações Unidas em 2020, reposiciona as questões que levantamos no início do texto: que propostas apontam para a construção de um outro mundo mais igualitário, democrático e solidário? Eu penso que o ponto central hoje é a retomada do protagonismo dos Estados nacionais (em perspectiva internacional) na formulação e elaboração de políticas públicas, com investimentos públicos que impulsionem um novo modelo de desenvolvimento com destaque para investimentos intensos em ciência, tecnologia e inovação. A pandemia da Covid-19 mostrou que é o conhecimento científico associado aos saberes populares a única via possível para se preservar a natureza e a própria civilização humana. Destacamos os eixos seguintes estratégicos gerais de uma política pública, tendo os 17 ODS como referência:

1. Fortalecimento das instâncias e organizações internacionais como as Nações Unidas e, em especial, a Organização Mundial da Saúde (OMS), que deve coordenar tanto ações para debelar a pandemia da Covid-19, com as vacinas entendidas como bens públicos gratuitos e de amplo acesso a todos, quanto para prevenir outras pandemias que certamente virão;

2. Colocar os 17 ODS na agenda internacional e dos Estados nacionais, a partir da mobilização dos atores sociais como ONGs, sindicatos, universidades, entidades de classe, tendo a erradicação da pobreza como objetivo central;

3. A questão ambiental há de ser destacada nas agendas dos decisores políticos, pois como os fluxos de pessoas e mercadorias são altamente interconectados, no contexto da globalização e mundialização das economias, cuidar das florestas, rios, mares, oceanos, reduzindo as emissões de gás carbono, é vital para a sobrevivência do planeta e dos próprios humanos que dele dependem totalmente;

4. A ascensão na última década das tecnologias da informação e comunicação na vida cotidiana por meio das plataformas digitais é uma realidade que deve ser colocada a serviço de uma agenda voltada para os 17 ODS; temas como o controle dos dados, a ética e transparência de seu uso, o acesso de todos à internet de qualidade e seus impactos sobre a empregabilidade dos jovens são essenciais para a agenda pública;

5. A democracia como princípio deve orientar a agenda dos decisores políticos, em sintonia com o incentivo a processos participativos vindos de baixo para cima, de modo que os cidadãos decidam sobre prioridades de investimentos públicos.

Certamente podemos questionar a viabilidade de implementação destes eixos estratégicos e dos próprios ODS, no contexto atual do capitalismo neoliberal que predomina na sociedade. É a esta questão que diversos cientistas políticos têm se debruçado nos tempos recentes e, sobretudo nas análises sobre em quais condições um outro mundo é possível? Entre esses cientistas políticos destacamos o sociólogo americano Erik Olin Wright que ao defender as “utopias reais” afirma ser possível a construção de uma agenda anticapitalista, mesmo dentro do capitalismo atual. É a análise do legado deste importante sociólogo que pretendemos dedicar um outro artigo, em sequência a este, sempre acreditando que está em construção um outro mundo mais igualitário, democrático e fraterno.