REPENSAR AS CIDADES E SEU MODELO DE PLANEJAMENTO
- Academia Pernambucana de Ciências
- Informes APC/SBPC-PE
- Informe APC/SBPC-PE #3
- REPENSAR AS CIDADES E SEU MODELO DE PLANEJAMENTO
Anísio Brasileiro (APC, Cadeira #82)
No contexto da pandemia que assola o mundo inteiro e, neste momento particularmente o Brasil, vimos em artigo anterior a necessidade do fortalecimento das instâncias e organizações internacionais como as Nações Unidas e, em especial, a Organização Mundial da Saúde (OMS), que deve coordenar tanto ações para debelar a pandemia da Covid-19, com as vacinas entendidas como bens públicos gratuitos e de amplo acesso a todos, quanto para prevenir outras pandemias que certamente virão.
Em paralelo, um dos aprendizados que já temos com a pandemia diz respeito à necessidade de se repensar os modelos de planejamento e organização espacial das cidades. Uma das explicações para o rapidíssimo espalhamento do vírus em escala mundial tem a ver diretamente com a urbanização planetária que, segundo Charmes e Rousseau (2020), desenvolve-se em torno de quatro processos absolutamente interconectados: o desaparecimento do mundo selvagem, a interconexão mundial dos territórios, a forte integração entre cidades e áreas rurais e a planetarização das desigualdades urbanas.
No artigo acima citado, analisamos o Relatório das Nações Unida publicado em 2020, mostrando que as desigualdades que assolavam o mundo se ampliaram com a pandemia, sobretudo nas cidades, atingindo as populações mais vulneráveis socialmente, submetidas a serviços públicos de péssima qualidade. Estas desigualdades guardam relação com o modelo de desenvolvimento das cidades, cujas populações são expulsas das áreas centrais e passam a habitar áreas periféricas longínquas e carentes de emprego e serviços públicos. Daí os longos trajetos até os bairros centrais e de classe média em busca de serviços já precarizados e de baixa remuneração. Tal é o caso das metrópoles brasileiras, submetidas há décadas às políticas de construção de eixos viários e de priorização aos fluxos baseados no automóvel. Nesta perspectiva, é crucial se buscar alternativas para reduzir a dependência do automóvel nos deslocamentos urbanos, o que não é uma tarefa simples.
De forma mais ampla, a questão é a de como inserir o desafio de se ter serviços públicos acessíveis de qualidade, em um novo modelo de planejamento para as cidades. Alguns autores vêm apontando a necessidade de repensar as cidades e seus modelos de planejamento, na perspectiva dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Cite-se Veron (2006) que afirma a necessidade da invenção de novo modelo de cidade sustentável (ville durable) assim definida:
i) Uma cidade de proximidade – ao contrário da cidade espalhada, busca-se aqui fortalecer a economia de proximidade, compartilhada, por meio do uso misto do solo nos bairros para reduzir deslocamentos e ofertar serviços públicos de qualidade próximos às residências da população;
ii) Uma cidade reumanizada – o bairro, o entorno de um centro de comércio, é acessível a pé, dispondo-se de adequados equipamentos coletivos e boas condições das ruas e pavimento para uso de bicicletas e caminhadas, com segurança em faixas exclusivas; associadas ao reescalonamento dos horários de trabalho; busca-se aqui uma mixagem social de modo que a oferta de serviços atenda a todas as faixas de renda e de idade da população;
iii) Uma nova forma de viver – há que se mudar o modo de consumo das cidades, passando a utilizar as diversas fontes alernativas de energia, o uso de materiais nas construções de habitações que contribuam para a transição ecológica e preservação do meio ambiente;
iv) Gestão e governança urbana – há que se fortalecer os processos participativos de tomada de decisão em relação a políticas e projetos voltados para o desenvolvimento sustentável, buscando-se a concertação e a criação de instâncias de decisão que contem com a presença dos atores sociais, em especial os movimentos e associações sindicais e ecologistas.
Essa ville durable é um sonho? Sua realização é possível? Como passar da teoria à prática? Qual não foi minha supresa, positiva, ao procurar na Internet sobre o que propunha a prefeita socialista de Paris, Anne Hidalgo, reeleita em 28 junho 2020, em plena pandemia que assolava o mundo. Seu programa de governo, em coligação com David Belliard, presidente do grupo ecologista de Paris, chamou-me a atenção logo pelo título: Le manifeste pour Paris, Paris en commun – L´écologie pour Paris (TERRA NOVA, 2020).
A expressão commun é plena de significados e possui uma vasta literatura em torno de sua conceituação — o que nos propomos a desenvolver em um outro momento.
A ideia força da proposta de Anne Hidalgo é: uma ecologia para Paris. Ou seja, o programa teve como foco ou eixo central a ecologia, a transição ecológica, a elaboração de um projeto político a ser implementado em uma cidade símbolo de lutas históricas expressa, por exemplo, pelo breve autogoverno da Commune de Paris (18 março a 27 maio 1871), esmagada pelas forças governistas de Thiers, ou pela modernidade cultural, representada pela construção da Tour Eiffel, para a exposição universal de Paris, ou o Centre Culturel Georges Pompidou, o famoso Beaubourg.
Não se trata aqui de analisar em detalhes esse original e inovador programa político e seu plano de ação para o quinquênio da prefeita reeleita (2020-2025), mas apontar eixos estratégicos de seu governo, o que se coloca como de grande utilidade para as mais de 5000 municipalidades brasileiras cujos prefeitos iniciaram seus mandatos há pouco mais de dois meses, em plena pandemia. O programa se estrutura em torno da ideia da resiliência da cidade, de antecipar-se, de resistir e de se reinventar na preparação do espaço urbano para os inúmeros choques que ocorrem de forma periódica (atentados, incêndios, ondas de calor, inundações, inclusive as epidemias, como a Covid-19, totalmente imprevista); e uma outra crise que vem se anunciando pelos cientistas há tempos, mas sem provocar ainda as reações necessárias para seu enfrentamento: a crise climática. Daí porque o programa coloca a ideia força de que l´écologie reste, plus que jamais, le socle de notre projet (a ecologia continua, mais que nunca, a base de nosso projeto). Em torno dessa ideia força, os eixos estratégicos são aqui citados:
Résilience et écologie: Préparer la ville de demain — Resiliência e ecologia: Preparar a cidade do amanhã – por meio de ações ligadas a(o): i) proibição de comércios que atentem à vida e segurança dos animais domésticos e selvagens, ii) luta contra todas as formas de poluição (não utilização do diesel nos veículos, redução das emissões sonoras, incentivo ao uso de bicicletas com a construção de ciclovias; iii) restituição dos espaços públicos aos pedestres, ampliando ainda áreas subtraídas de estacionamentos de veículos privados, a se destinarem para cafés, atividades culturais iv) incentivo a uma alimentação saudável, fazendo de Paris uma capital agrícola, em cooperação com os agricultores, de modo que os produtos locais sejam acessíveis a todos, via cantinas, restaurantes solidários, feiras ecológicas, supermercados cooperativos.
Nouvelles solidarités: assurer un filet de sécurité a tous les parisiens — Novas solidariedades: assegurar uma rede de segurança a todos os parisienses — que permita a construção dessas redes de solidariedades em cada bairro, entre vizinhos, entre gerações, capazes de cuidar de pessoas em situação de vulnerabilidade por problemas de saúde, de isolamento social, buscando-se mecanismos de geração de empregos, de formação profissional, atuando para que as pessoas não deixem de ter algum tipo de renda; também, incentivando a cultura do voluntariado entre vizinhos, com especial atenção às mulheres e crianças que sem poder frequentar as escolas sofrem com o isolamento social.
Santé publique: renforcer le service public de santé parisien — Saúde pública: reforçar o serviço público de saúde parisiense — de modo a possibilitar a todos o acesso universal e automático aos cuidados de qualidade, reduzindo desigualdades sociais e territoriais ligadas à saúde; criando neste sentido equipes cobrindo os espaços territorializados ofertando serviços de saúde o mais próximo dos bairros, atuando na prevenção aos vírus, sob a coordenação de uma Direction de la Santé Publique (direção de saúde pública), sempre com a participação dos usuários e de suas formas de representação; fortalecendo também a pesquisa em saúde, com a revalorização dos pesquisadores, engenheiros e técnicos em parceria com os organismos técnicos do Estado para o financiamento perene no longo prazo, de projetos de saúde e suas integrações com o meio ambiente e demais infraestruturas, de água por exemplo.
Économie: soutenir et transformer — Economia: apoiar e transformar — o modelo econômico de desenvolvimento para melhor integrá-lo à luta contra as mudanças climáticas e à necessidade de organizar a resiliência de Paris e Région Ile-de-France; para isto propostas são elaboradas, em parceria com as câmaras de comércio, federações profissionais e representantes dos comerciantes, dentre as quais aqui citamos um plano para relançar o turismo, o apoio aos artistas e atores culturais, recursos para financiar as start-ups, comércio, empresas culturais, entidades ligadas à “Economia Social Solidária”, a retomada do comércio de proximidade para ser tão competitivo quanto o e-commerce mundializado. Estas transformações econômicas, focam três domínios: i) turismo – é proposto um referendum para a população decidir sobre o futuro das plataformas de locação de imóveis turísticos, o retorno do trem à noite para permitir que turistas, em especial jovens, possam se deslocar à capital sem maiores custos ; ii) alimentação – em parceria com a empresa municipal Eau de Paris (a análise da municipalização dos serviços de água de Paris merece um artigo em si) e com os agricultores, será elaborada uma política agrícola, a nível da aglomeração, para a venda de produtos locais; iii) relocalização industrial – com o incentivo à localização de atividades produtivas na própria cidade, no espírito da “Fabriqué à Paris” (Fabricar em Paris), incentivando o caráter inovador das empresas.
Ville du quart d´heure: Le pari de la proximité — Cidade do quarto de hora: o desafio da proximidade – pois a pandemia trouxe mudanças profundas nas relações de trabalho com a ampliação das novas formas de teletrabalho, bem como nas relações entre as pessoas e seus bairros próximos que se ampliam para além das compras a noite ou nos fins de semana; as ações do programa da prefeita Anne Hidalgo apontam para a melhoria da qualidade de vida nas vizinhanças, seja pela ampliação dos espaços dedicados a coworking, tornando os recursos ao teletrabalho mais igualitários e perenes, o que implica o acesso à internet de qualidade para todos, em todos os lugares; ou o incentivo ao exercício de práticas solidárias entre as pessoas com a criação dos “quiosques citoyens” (quiosques cidadãos) e da “Fabrique de la Solidarité” (Fábrica de Solidariedade) que mobilizaram mais de 4000 voluntários durante o confinamento com vistas a integrar e ajudar as pessoas. Estas ações contam com a coordenação a nível das Mairies (Prefeituras) dos vinte arrondissements (bairros de Paris) e diversas outras não citadas aqui fortalecem as solidariedades locais e os deslocamentos chamados de 15 minutos, nos quais as pessoas possam ter suas necessidades atendidas andando a pé em um raio de um quilômetro a partir de suas residências.
Democratie et engagement: Partager les clés de la ville — Democracia e engajamento: Partilhar as chaves da cidade – uma vez que a pandemia tem mostrado em todo o mundo iniciativas concretas de envolvimento dos cidadãos, por meio de aplausos nas janelas aos profissionais da saúde que arriscam suas vidas em prol do próximo, solidariedades entre vizinhos, parentes e amigos. O programa propõe ações visando fortalecer o ato de fazer viver a democracia local em tempos de crise, a exemplo dos conselhos de bairros (prática antiga), das “Assisses citoyennes” (encontros cidadãos) em que pessoas escolhidas por sorteio se manifestam e votam um orçamento participativo para a implantação de projetos de interesse local, ou ainda da criação de uma commission de controle citoyen (comissão de controle cidadão) para analisar e propor questões éticas e formas democráticas e transparentes de gestão dos dados gerados pelas plataformas tecnológicas (os chamados Commons numériques) ou comuns digitais.
La Jeunesse: Se mobiliser pour et avec nos jeunes — A Juventude: Se mobilizar para e com os jovens — a pandemia e a crise econômica têm gerado em todo o mundo uma dupla crise na juventude, seja pelo atraso na formação acadêmica, ou pela perda de referências, ligação social e confiança no futuro. Assim, uma das agendas propostas no programa aqui em análise trata da construção de um pacto metropolitano para ajudar as pessoas que vivem nas ruas, ofertando habitações acessíveis a todos; aliado a uma subvenção por meio de bolsas aos estudantes para ajudar nos alojamentos, alimentação, saúde, lhes apoiando para se inserir no mundo do trabalho e retomando a confiança no futuro.
Que ensinamentos tirarmos desta breve e sintética apreciação do programa proposto pela Prefeita reeleita em Paris? Ao recomendar fortemente que aqueles que se interessarem acessem à internet e o estudem na íntegra, dois ensinamentos nos chamam a atenção. Primeiro, temos um caso concreto de uma cidade cuja política pública coloca elementos reais para a construção de uma ville durable, nos termos que compreendemos neste artigo, sabendo que Paris acumula também desigualdades sociais, como é intrínseco ao modo de produção capitalista que vigora na Europa, mas por dentro do capitalismo é possível construir brechas para que se possa pensar em outro mundo, que tenha no binômio ecologia e solidariedade seu fio condutor.
Segundo, saímos das eleições municipais recentemente e, sem dúvida, o foco no combate à pandemia e a busca de vacinas para todos é o objetivo principal de todo Prefeito comprometido com sua população. Mas, em paralelo, é necessário que se repense a cidade e seu modelo de planejamento e o caso de Paris mostra que isto é possível. Para isto, elaborar ou atualizar os planos de mobilidade urbana, obrigatórios para todos os municípios com mais de 20.000 habitantes, é uma oportunidade de se colocar como referência o foco nos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) que têm como eixo central a erradicação da pobreza e a construção de cidades resilientes, seguras e sustentáveis. Portanto, é essencial a cooperação com as universidades e instituições de pesquisa que detém conhecimentos e experiências para, junto com as Prefeituras e organizações da sociedade pensarem e executarem políticas públicas de interesse comum.
REFERÊNCIAS
CHARMES E. ; ROUSSEAU M. La mondialisation du confinement. Une faille dans la planétarisation de l´urbain? Dossier: Les visages de la pandemie, La vie des idees, Paris, 2020.
VERON J. L’urbanisation du monde, Paris, La Découverte, 2020.
TERRA NOVA. LE THINK TANK PROGRESSIST, Le Manifeste do Pour Paris (Anne Hidalgo, Maire de Paris et David Belliard, Président du groupe écologiste de Paris), Disponível em : www.tnove.fr, Acesso em : 16 de junho de 2020.