O PAPEL DAS EMPRESAS ESTATAIS

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Abraham B. Sicsú (APC, Cadeira #21)

Um debate, que está crescendo e deve assumir destaque nos próximos meses, volta a ser o papel das empresas estatais e seus destinos. A recente demissão do presidente da Petrobrás trouxe para o centro das discussões o tema.

Duas posições, diametralmente opostas, surgem sobre o assunto. A de cunho liberal que vê, na existência dessas empresas, ingerência indevida do Estado no mercado e sistematicamente propõe como saída a privatização de todas as empresas estatais. A de cunho nacional desenvolvimentista que acredita que qualquer privatização tem por detrás o interesse do capital em detrimento dos anseios da sociedade. Posições intermediárias dificilmente surgem no debate.

Não nos atendo ao caso específico da Petrobrás, sem deixar de tratá-lo mais adiante, é importante saber o porquê se criam e se mantêm essas empresas. Também, compreender melhor qual a sua lógica e o papel que devem desempenhar como alicerces para um projeto de desenvolvimento.

É importante ter em mente que são empresas e, como tal, tem que procurar a sustentabilidade econômica que lhes permita desempenhar suas atividades sem ter que recorrer sistematicamente  ao erário para sua sustentação. Mas, também, são estatais, o que significa que devem atender aos interesses da sociedade em geral e a um projeto nacional.

Tendo isto em mente, a primeira questão deve ser respondida. As empresas estatais surgem e devem se manter em espaços estratégicos para o País e sua população?

Entendam-se espaços estratégicos como aqueles em que a vulnerabilidade e a insegurança não podem ser fatores de paralisações de atividades ou mesmo de postergação de investimentos prioritários.

Neste sentido, setores de longa maturação ou de investimentos que não sejam atrativos no curto prazo para o capital privado, são focos em que o Estado não pode deixar de se preocupar e criar condições de investimentos.

Também, setores que ameacem o suprimento de segmentos prioritários, em que deixem o País à mercê de grandes corporações internacionais, são fundamentais para que o Estado possa regular com eficiência e desempenhar seu papel em áreas como saúde, educação e segurança. A crise sanitária que estamos vivendo, a desindustrialização que o País vive nas últimas décadas, mostram isto. Depender de um fornecedor apenas, ou de mercados muito oligopolizados, tende a deixar o País em situação muito delicada.

Outros fatores poderiam ser apontados para a existência de empresas estatais, como a importância de participar em novos segmentos produtivos que determinarão a matriz de oferta nos próximos anos, ou, segmentos tecnológicos que podem apontar para oportunidades que vão se configurando e ainda não são prioritários para os interesses privados. Também, não deixar de atentar para segmentos cuja interrupção de atividades ameace a dinâmica da matriz produtiva e de serviços, segmentos em que não se pode depender de interesses privados com o risco de comprometer a dinâmica econômica e social do país.

Com este quadro, evidentemente, segmentos que se consolidam, ou mesmo já amadurecidos, em que não se ameace os interesses nacionais, podem ser privatizados para permitir que se atue em outras áreas carentes para a lógica de crescimento planejada. Privatizar e criar empresas estatais fazem parte da lógica de expansão capitalista. Deveriam ser analisadas sob esta ótica.

Voltemos à Petrobrás. Maior empresa de transformação nacional, em um setor que é a base de todo o processo produtivo do País, que nos últimos tempos tem sido gerenciada com uma visão econômica extremamente conservadora, cada vez mais se distanciando de seus papeis como estatal.

É bom atentar para os números que os balanços da Petrobrás apresentam. Em 2019, com a rigidez da política de atrelamento aos preços internacionais, conseguiu-se um lucro líquido superior a 40 bilhões de reais. Em 2020, mesmo com a paralisação que a pandemia causou, obteve lucro e no último trimestre, com a desvalorização cambial e a restrição de investimentos, chegou a um patamar de 60 bilhões de reais. Lucro astronômico, o maior em um trimestre na história da companhia, que se pretende reverter apenas para os interesses internos dos acionistas da companhia.

Vale ressaltar que esta lucratividade é muito significativa frente aos custos operacionais atuais da empresa. Segundo os dados da própria empresa, a extração do barril de petróleo do Pré-Sal, o mais caro dos produzidos no Brasil, não chega a dez dólares e o refino para diesel, gasolina e gás de cozinha, tem custo menor do que 2,5 dólares. Tendo em conta que grande parte da extração atual vem dessa fonte, pode-se verificar a lucratividade do negócio. 

Lembrar que hoje, no mercado internacional, o barril de petróleo bruto está em torno de sessenta dólares. Mesmo assim, insiste-se numa política de paridade com os preços internacionais, o que não representaria mais o custo médio do nosso petróleo consumido.

Esta política faz com que se coloque em dúvida o refino pela Petrobrás e se propague a privatização. A importação de derivados passa a ser norte para o setor. A importação de combustíveis, mesmo que não necessária dada a capacidade de refino ociosa existente no último ano, tornou-se prática recomendada. Temos, atualmente, cerca de 30% de capacidade ociosa nas refinarias brasileiras. Ajustes técnicos, amplamente dominados, permitem o uso do abundante petróleo nacional.

Como dito, a política atual se pauta pelos preços internacionais dos derivados e, mais, pela privatização das refinarias. A lógica é retirar a companhia desse segmento. Um absurdo, dada a rentabilidade empresarial que é apresentada. 

Ao mudar a direção da empresa, em momento algum se falou em redirecionar a política. Ao contrário, visando não criar ira maior no “mercado”, ressaltou-se que se pretende manter a liberdade da empresa para continuar com a política que vinha fazendo, principalmente de segmentação de suas atividades e privatização de setores de interesse privado, mantendo a política de preços. As primeiras reações do mercado de capitais parecem ter levado o governo atual a uma posição talvez mais ortodoxa. A troca de comando não indica nenhuma mudança na estratégia de atuação da companhia.

Outro aspecto, que deve ser ressaltado, é a importância da Petrobrás para o perfil de investimentos nacionais em áreas fundamentais para alicerçar nossa sociedade. Esquece-se de que a Petrobrás tem importância não só para o setor, mas também para áreas fundamentais da formação da cidadania, como a de educação, ciência e tecnologia, de inovação e da cultura. Seus investimentos até 2015 eram o sustentáculo de importantes iniciativas, muitas delas paralisadas ou não dinamizadas. 

A companhia investia mais que muitos Ministérios fins em algumas destas áreas. É uma das poucas alternativas que se tem para consolidar segmentos importantíssimos para a construção de uma identidade nacional, seja na área cultural, seja na área produtiva.  Permitir que haja uma base técnica sólida nacional para a reversão dos baixíssimos indicadores de produtividade que nosso país apresenta, bem como apoiar a valorização da diversidade de ambientes e expressões culturais de nosso país, um compromisso que não deveria ser rompido. Infelizmente, esta política que era seguida pela empresa está abandonada e os investimentos vem minguando.

Não somos contrários a uma intervenção na empresa desde que realmente signifique uma mudança em prol do que deve ser uma empresa estatal em área estratégica: garantir sua sustentabilidade econômico-financeira sim, mas com preocupação com os anseios da sociedade, seja em sua política de preço, seja em sua política de investimentos, garantindo os setores básicos da empresa, sua manutenção e crescimento, e os programas de desenvolvimento em que deve colaborar com a sociedade.

Voltando ao geral das estatais, verifica-se que o Banco Central já garantiu uma autonomia que pode não se atrelar aos interesses do País e muito provavelmente será administrado sob a ótica dos bancos privados. As diretrizes de uma política monetária ortodoxa que vem inibindo investimentos produtivos no País estão garantidas para pelo menos dois anos do próximo governo, diminuindo em muito a possibilidade de reversão rápida das atuais tendências, mesmo que haja uma opção democrática de perfil oposta à atualmente observada.

Fala-se agora em expandir a privatização do setor elétrico, atividade que já foi fragmentado e parcialmente privatizada. Praticamente toda a distribuição foi privatizada, sendo que a geração de fontes alternativas de energia foi totalmente aberta ao capital privado. O que está em foco agora é a grande geração e distribuição com base na hidroeletricidade. Mesmo estruturas que sempre vêm dando lucros, basta analisar os balanços, como a Companhia Hidrelétrica do São Francisco, foram incorporadas à Eletrobrás e desvinculadas do desenvolvimento regional. Tirar o aspecto estatal significa atender unicamente a lógica dos acionistas, independente do projeto de desenvolvimento local/regional.

Novamente, fala-se no setor financeiro bancário que está na mira do grande capital privado. O Banco do Brasil é o que aparece com maior visibilidade. Mas, também, nos Bancos de Desenvolvimento como o BNDES, os Bancos Regionais como o BASA e o BNB, entre outros. A preocupação de alavancar os investimentos estruturadores, alicerçando as políticas de desenvolvimento de longo prazo deixou de ser prioritária.

A estratégia nacional será definida pelo grande capital, sem considerar o que a sociedade brasileira necessita? Assumimos abandonar um projeto nacional com um mínimo de autonomia de decisão? É o cenário que vem se configurando.