CIÊNCIA E CULTURA POPULAR: DOIS COMPÊNDIOS

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Abraham Benzaquen Sicsú (APC, cadeira #21)

Cansei, temporariamente, de ler jornais, de discutir economia e política. É estressante a cada momento ter que enfrentar um mundo com tantas adversidades. Preciso respirar e me isolar com meus pensamentos.

Saio para a caminhada. Na porta de casa encontro um pacote bem-feito. Abro. Uma carta e dois compêndios sobre o médico paraibano Arnaldo Tavares. Enormes, mais de 750 páginas. A carta, muito amável, diz que me foram enviados por um pesquisador que foi financiado pela instituição que presidi. Fico feliz por ser lembrado.

Vejo o título do primeiro compêndio e me assusto, “Estudos etnomédicos sobre plantas no Nordeste do Brasil”. De imediato, penso, em silêncio: terei que procurar alguém da área para repassar. Exemplares tão bem encadernados e produzidos, não devem ser desperdiçados. Mas, com certeza, nada entenderei e, portanto, não são para mim.

Vejo a apresentação. Está lá: “Estes livros tratam de uma coletânea de trabalhos desenvolvidos pelo médico dermatologista, cientista, professor, poeta e desenhista Arnaldo Tavares de Melo (1917-1992). Tão versáteis quanto seu autor, os capítulos levarão o leitor por viagens através das histórias dos árabes e como influenciaram a medicina até hoje; pela contribuição dos negros muçulmanos no Nordeste Brasileiro; pela cura de diversas doenças por meio das plantas; pelas crenças populares e pelas curiosidades do vocabulário matuto… Como um bom médico, tinha um constante cuidado na busca pelos saberes científicos da medicina. E, como um bom alquimista moderno, conciliava estes dois saberes almejando sempre o bem estar de seus pacientes.”

Explicado o porquê de pesquisadores tão renomados do Programa da Pós-graduação de Inovação Terapêutica da UFPE se interessarem em organizar essa publicação. A junção dos temas científicos com a cultura popular, a busca de divulgação desses achados, a sistematização de saberes que tão bem podem ser complementares, o caminho que foi trilhado pelo pesquisador e incentivou os professores a se debruçarem sobre a sua obra.

Curioso que sou, dou uma chance e vejo o título do segundo: “Crendices populares sobre a bouba e a banana”. Parece que está mais próximo. Pelo menos uma chance para folhear os livros.

No entardecer começo a me aprofundar. No primeiro volume leio a Apresentação e as Palavras do autor. Interesso-me. O tema da contribuição árabe para a cultura e língua brasileira presente. Várias palavras de nosso cotidiano, expressões, maneiras de se manifestar, legados que tivemos e que nos marcam.

As definições científicas são precisas. Baseadas em literatura atual para a época que foram escritas. Não aprofundo por ser alheio ao meu conhecimento, mas reconheço a seriedade do trabalho.

Um breve artigo que me deixou curioso e me foi interessante ver sobre a etimologia da maconha.  Sua origem e percursos em diferentes espaços do mundo. No nosso caso, a palavra vem de “que se fuma”, afro, do Kimbundu, onde se diz makanha, ou do Umbundu, mekanha. Informação talvez pouco relevante para acadêmicos, mas cujo artigo foi agradável ler.

Mais me marcou o Compêndio segundo.  Para explicitar a influência árabe na medicina, faz um muito interessante relato da história desses povos. Sua contribuição para a humanidade é muito marcante. A descrição do Código de Hamurabi e da Escola de Alexandria, demonstra com clareza os avanços que tinham sido dados e as contribuições na formação da estrutura ético moral que orienta nossa civilização.

Chamou-me muito a atenção as bibliografias dos médicos que tiveram peso no evoluir do mundo árabe. Vários deles de crença judaica. Podíamos resgatar essa convivência harmoniosa.

Em particular, por eu ser também judeu oriundo de país árabe, fiquei muito interessado nas descrições sobre Maimonades. Sua importância para o império de Saladino I, como médico e como filósofo. Sua influência filosófica perpassa os tempos, tendo sido referência de São Tomás de Aquino e de Espinosa, por exemplo. Sua concepção da medicina, “tratei tanto dos doentes que acabei com doenças”, visão que dizia deveria orientar os que abraçassem a profissão. Entendia a medicina como ciência, mas também como arte e como profissão. Seu tratado sobre a asma, um ensinamento que orienta os especialistas até os dias de hoje, conforme diz o professor Arnaldo no texto.

As crendices populares e o folclore paraibano são outro ponto alto da obra. Apega-se a dois itens particularmente. A bouba, mancha cutânea que é transmissível e causa sequelas grandes, e ao uso da banana na alimentação e nas curas. Quanto à bouba, como sou da era pós penicilina, tive interesse histórico de entender como esta enfermidade veio a trazer inúmeros problemas para a sociedade nordestina da época.

No que tange às bananas, aprendi muito desde seus usos até as inúmeras variedades existentes e das que se chamam falsas bananeiras. Nas crendices relatadas, identifiquei algumas em pessoas com quem convivi, pessoas que ainda têm receio de mulher grávida comer bananas gêmeas, de não comer banana com bebidas alcoólicas, banana anã dá congestão, entre muitas outras. No folclore existem contos deliciosos, e novas crendices como a de que pasta de banana mata ratos. Não sei se é verdade, mas é crença que se generaliza ainda no Sertão.

O texto é um vai e vem, em que ditos e feitos populares são entremeados por uma bibliografia científica séria e bem cuidada. O uso de plantas medicinais em diferentes áreas das especialidades médicas é ressaltado, com meu particular interesse pela dermatologia onde acho melhor emplastros do que cauterizações.

Se à primeira vista os Compêndios nada tinham a ver comigo, a leitura me desdisse e mostrou um trabalho muito agradável para passar boas horas com nossa cultura, nossos costumes, com a sabedoria dos nossos povos.

Os cientistas têm muito a dar para o avanço da nossa sociedade. Sem dúvida, mais que demonstrado. Mas, também, tem muito a aprender com a cultura popular que bem sistematizada traz conhecimentos preciosos consolidados no passar de gerações humanas.

BIBLIOGRAFIA

TAVARES, A. Estudos etnomédicos sobre plantas no Nordeste do Brasil. FACEPE/MVC, João Pessoa, 2020. 316p.

TAVARES, A. Crendices populares sobre a bouba e a banana, FACEPE/MRV, João Pessoa, 2020. 440p.