BIOÉTICA DA COMPAIXÃO

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Aurelio Molina da Costa (APC cadeira #37)

A Bioética, que possui várias raízes, apesar de ser intrinsecamente ligada a Ética e, portanto, a Filosofia, é um novo Saber (reflexivo, plural, interdisciplinar, transcultural, não dogmático e pragmático) que ainda está sendo construído, afeito não só ao relacionamento e convivência entre os seres humanos, como a Ética, mas com toda a Biosfera (portanto, mais amplo e sem “fronteiras” de formas de vida). Em seu escopo ela pretende ser um instrumento poderoso, tanto na produção quanto na divulgação e aplicação do Conhecimento, visando, como movimento, a construção de uma sociedade mundial justa, fraterna, responsável, livre, feliz e ecologicamente equilibrada e sustentável.

Na história da sua construção, assim como do seu status epistêmico, poderíamos ressaltar o Código de Nuremberg (1947), criado após os crimes nazistas contra a humanidade e que realça a importância do respeito ao livre arbítrio dos participantes voluntários de experimentos científicos, por meio da obtenção de um consentimento prévio a sua integração à pesquisa proposta. Este conjunto de recomendações foi ampliado e aperfeiçoado na posterior Declaração de Helsinque (1964), processo de aprimoramento que continua, sistematicamente, até os dias de hoje.

Também é inegável que, mesmo depois desses dois marcos éticos para as pesquisas científicas envolvendo seres humanos, inúmeros agravos a dignidade dos seres humanos continuaram a acontecer, sendo os mais conhecidos, entre muitos: a) a estóica luta de Henry Beecher por um melhor padrão ético nas pesquisas clínicas, que culminou numa histórica publicação no New England Journal of Medicine (1966), onde o autor relatou 22 pesquisas médicas (4 envolvendo crianças) nas quais ocorreram graves afrontas éticas (em verdade, as denunciadas eram em número muito maior e quase todas realizada nos melhores hospitais americanos); b) o estudo “Tuskegee”; indubitavelmente racista, no Alabama (sífilis não tratada, pacientes negros não informados da doença e da possibilidade de tratamento, entre 1932-1972); c) o experimento do Hospital Estadual de Willowbrook, Nova York (1950-1970) quando centenas de crianças pobres e com deficiência intelectual foram expostas, de maneira controlada e sistemática, aos vírus da hepatite B (sem o pleno conhecimento de seus pais), tanto por contaminação feco-oral quanto por injeções, estudos esses que, inclusive, acabaram recebendo vários prêmios; d) a pesquisa realizada no Hospital Israelita de Doenças Crônicas (1963), também em Nova York, que consistia em injetar células cancerosas vivas em pacientes idosos adoentados, seguida de várias métricas; e) o caso Karen Ann Quilan, na Suprema Corte de Nova Jersey, no qual foi dado aos seus pais o direito de desligar o respirador artificial que proporcionava suporte à sua filha.

Em virtude destes agravos, e de novos desafios e dilemas éticos e legais na assistência à saúde proporcionados pelos avanços na Biotecnociência como, por exemplo, o estabelecimento dos critérios para a seleção dos pacientes que teriam acesso ao uso das máquinas de hemodiálise, pela alta demanda, baixa disponibilidade e custo elevado (“God Comission”, Seattle, 1960), foi criada, em 1978, nos EUA, a “National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research”, comissão que, após 4 anos de trabalho, gerou o famoso Relatório Belmont, que por sua vez, juntamente como o livro “Princípios da Ética Biomédica” (1979), “deu vida” aquilo que é conhecido como a Bioética Principialista.

Esta abordagem, com os seus princípios “Beneficência”, “Não-Maleficência”, “Respeito à Autonomia” e “Princípio da Justiça”, foi sem dúvida a principal responsável pela popularização da Bioética, particularmente nos anos 80 e 90 do século XX, que atingiu seu auge com a “Declaração sobre Bioética e Direitos Humanos” (UNESCO, 2005). Por outro lado, esta mesma abordagem principialista gerou inúmeras discórdias, com diferentes grupos, de diferentes regiões e culturas, cada um priorizando e hipervalorizando um dos princípios ou públicos alvos ou objetivos a serem atingidos, acarretando o que denomino de “Diáspora da Bioética” que resultou na Bioética Principialista, na Bioética Autonomista, na Bioética de Intervenção, na Bioética Feminista, na Bioética Clínica, etc.

Em nossa opinião esta “dispersão” não foi favorável aos objetivos iniciais da Bioética, propostos por Potter, na qual ela seria uma ferramenta necessária para sobrevivência humana no contexto técnico-científico contemporâneo e de crise ambiental, inclusive porque o próprio Potter, de maneira sábia e relevante, já defendia, desde a primeira fase do movimento, denominada de “Bioética Ponte”, que ela poderia ser utilizada por qualquer pessoa, visão que ele continuou defendendo na atual “Bioética Profunda”, até sua morte em 2001.  De fato, pelo contrário, a Bioética foi ficando “sofisticada”, tornando-se “prisioneira” do academicismo, de especialistas, de debates epistemológicos ricamente elaborados e elitizados. E, ao invés de um movimento, “virou” uma disciplina e quase se tornou dogmática, na dita “Bioética Global”, apesar do termo sugerir um significado oposto.

Como o primeiro autor brasileiro de uma dissertação onde se estudou a política de planejamento familiar sob a ótica dos princípios bioéticos (Family Planning in Brazil: An Instrument of Health or Ilness?, 1990), defendo que o Principialismo Bioético, acrescido dos princípios da “Precaução” e da “Responsabilidade Ilimitada” (princípio coerente com o atual paradigma científico que nos indica que tudo está interconectado e interdependente, concepção esta que, obrigatoriamente, nos “corresponsabiliza” por tudo e por todos) deve, sim, ser utilizado em larga escala, porque ele é um pragmático, eficiente e poderoso instrumento na construção de um “outro mundo possível”, isto é, justo fraterno, livre, feliz, num meio ambiente equilibrado e sustentável para todos os Seres.

Além disto, pugnamos que estes seis princípios devem ser utilizados não só de maneira lógica e racional para edificar um “mundo melhor”, mas também devem ser “envolvidos” com uma emoção, um sentimento, que me parece apropriado ser denominado de Compaixão, vocábulo que se origina do latim compassionis, e que pode ser definido como um desejo de aliviar ou minorar o sofrimento de outro ser, demonstrando especial empatia por aqueles que sofrem.

Finalizando, gostaríamos de frisar que a Compaixão é um sentimento nobre e diferenciado, que não se restringe apenas a um compadecimento ou pena por indivíduos ou contextos, mas é uma atitude respeitosa a sua dor, “sentindo o que o outro sente” e que tende a se tornar uma consciente ação de beneficência expandida para todos os seres, prática que pode ser robustecida por uma mente treinada e motivada e em consonância com um desejo de que todos os Seres estejam livres do sofrimento e das causas do sofrimento.

Não tenho dúvidas que incorporar este sentimento diferenciado ao vocábulo Bioética não só fortalece os mais elevados objetivos da mesma, mas também é uma forma de reforçar o necessário respeito, cuidado, empatia e amor por todos os seres, isto é, por toda a Biosfera, principalmente nesta “antevéspera” de uma crise climática de gravíssimas consequências.