O ATRASO PERSISTENTE DO BRASIL

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Clóvis Cavalcanti (APC, Cadeira #7)

 

Embora o Brasil possua uma fachada impactante de traços modernos, a realidade por detrás desse véu não pode enganar. Passei os anos da minha adolescência (1952-1959) estudando no Rio de Janeiro. Fui mandado para lá por meu pai, que me internou no Colégio Nova Friburgo – um educandário-modelo da Fundação Getúlio Vargas. Fiz lá do admissão ao terceiro científico. Eu morava no interior de Pernambuco, na Usina Frei Caneca, onde nascera. Rio-Frei Caneca, um contraste intenso que me ensinou muitas coisas. Meu pai, descendente de donos de engenho, era o contador da empresa. Tinha estudado em Garanhuns, quando meu avô ainda não fora golpeado duramente pela crise dos anos 1930. No fim de 1951, já com seis filhos – sou o mais velho dos 11 que nasceram e 10 que se criaram –, ele me consultou se eu concordava em estudar no Rio. A princípio, seria no Pedro II. Achei a idéia, boa. Terminei indo, entretanto, para o Colégio Nova Friburgo, graças à oportunidade de um exame nacional, de seleção para essa escola – fundada em 1950, e que tinha uma proposta nova, inédita, de educação no Brasil –, com a possibilidade de ali estudar com bolsa. Meu pai me inscreveu no concurso. Consegui notas para ingressar no colégio e obter o benefício da bolsa. Foi assim que cheguei ao Rio – uma verdadeira Cidade Maravilhosa na época – em março de 1952, juntamente com outro menino de Pernambuco (tínhamos então 11 anos), Jorge Gomes do Cravo Barros, professor aposentado da UnB.

Em 1952, a proporção de analfabetos na população brasileira (50,6% dos maiores de 15 anos) era muito maior do que hoje – ainda que, em números absolutos, menor. Havia favelas no Rio, malandragem na Lapa. Mas se tinha impressão de segurança – uma segurança que se sentia deveras –, além de que a cidade era alegre, divertida. Nos meus 13-14 anos de menino, andava em toda parte sem qualquer receio. Aproveitava para curtir esses anos dourados. Ia ao Maracanã de bonde sem nenhuma perda de tempo. Nunca presenciei um ato violento, no estádio, fora dele ou em ocasiões comuns. Nunca encontrei alguém que houvesse sido assaltado. A garotada não tomava drogas. Namorava numa boa, sob severas restrições dos pais das meninas, talvez por isso frequentando bordéis – que não eram tão sórdidos quanto se imagina. Bebia Cuba libre. Vivia-se bem. Na minha família, não havia plano de saúde. Todavia, ninguém nunca ficou sem a melhor assistência médica possível. Meu pai só ia aos melhores clínicos do Recife – como Altino Ventura, para os olhos, Waldir Cavalcanti, para nariz, ouvido e garganta (com quem me operei de amídalas), Luiz Athayde, para os nervos. Éramos privilegiados. Nada parecido com as agruras de hoje para quem tem bons planos de saúde e luta para ter serviços à altura do que espera.

Francamente, olhando o panorama brasileiro de agora, sinto que o contexto todo parece ter piorado. Na década de 50, para viajar ao Rio, dispunha-se de navio, avião, rodovias (ruins, é certo) e trem (era uma epopeia fazer a viagem for via férrea, mas existia essa possibilidade). Eu mesmo, indo para a então capital federal, viajei duas vezes de vapor – uma no italiano Comte Grande (em 1955) e outra no brasileiro Pedro II (em 1956). Também fui de ônibus, aí já em 1961, quando tinha voltado a residir em Pernambuco. Queria viver essa aventura – aventura mesmo, numa viagem de 6 dias. Foi a única vez que usei ônibus entre o Recife e o Rio. De trem, viajei em 1958, de São Paulo a Corumbá, por exemplo, com um colega de colégio. Trocamos de trem em Bauru. Viagem formidável, de quase três dias. O segundo trem em que embarcamos era lento. Mas existia esse serviço. Hoje, não mais funciona. Para mim, evidência de retrocesso. Como acontece, aliás, em relação ao transporte ferroviário em toda parte no País. Nosso meio de transporte nos anos 1940 e 1950, entre a usina e o Recife era só o trem. O Brasil optou nos anos 50 por um modelo de desenvolvimento com base no meio rodoviário, atendendo ao interesse das montadoras e das petroleiras. Agora, quer retomar o trem. Não consegue. Para mim, mais sinal de atraso. Vejam a China. Em 2006, começou a construir seu primeiro trem-bala. Alcançou hoje a marca de uma rede de 10.000 km de ferrovias ultramodernas, eficientes, admiráveis, com trens que andam a 300 km por hora. Enquanto isso, a Transnordestina – uma estrada de ferro pré-moderna, de uma única via – começou a ser construída em 2007, e dispõe atualmente de apenas 500 km. Que marca maior de atraso se pode imaginar? Neste ritmo, a ferrovia, que deve ter 1.500 km quando concluída, levará 20 anos para ficar pronta. Ou seja, temos que esperar o ano de 2041 chegar para inaugurá-la! 

Faz alguns anos, um contínuo da Fundação Joaquim Nabuco me dizia: “As coisas, em vez de melhorar, pioram”. Compartia minha noção de progresso, que se resume na expectativa de que as “coisas melhorem” sempre. E aumentem nossa felicidade. Progresso, na verdade, o que é? “Marcha ou movimento para diante”, melhoramento – diz o Michaelis. “Desenvolvimento ou alteração em sentido favorável”, evolução – indica o Aurélio. Enfim, é isto o que o senso comum imagina. Gastar menos tempo para resolver um assunto no banco, no INPS, na Receita Federal, no posto de saúde – tal é o que queremos, pois todos ganham com algo (a economia de tempo) que faz a vida mais amena. Sem esquecer que tempo é vida – e algo irrecuperável, ao contrário do dinheiro. Lamentavelmente, porém, são cada vez maiores os sinais de que vivemos num mundo que nega a aspiração de que as coisas melhorem sempre. Veja-se, por exemplo, o que acontecia nos campos de futebol brasileiros antes da pandemia, algo que começou em São Paulo e se alastrou pelo País. Um simples SportXSanta Cruz ou NáuticoXSport, a que se podia assistir sem nenhum receio, salvo o de ver seu time derrotado (e viva o Sport que foi campeão brasileiro em 1987!), virou motivo de apreensão. Qualquer jogo exigia que, nos estádios, as torcidas adversárias fossem separadas por muitos metros de distância, sob as vistas do policiamento ostensivo, criando-se assustador espaço vazio nas arquibancadas (e perda de arrecadação). Antes, não era assim. As torcidas ficavam lado a lado e não havia problema de maior monta. Saía-se depois dos jogos mansamente, trocando-se brincadeiras – e era só isto – com os derrotados.

Entre coisas que me incomodam e demonstram declínio na qualidade de vida nacional estão as viagens aéreas. Lembro-me, quando adolescente, como era agradável viajar nos aviões Superconstellation da Real entre o Rio e o Recife. Comida excelente em pratos de louça, com talheres de metal, copos de vidro, uísque, vinho, licor, café em xícaras dignas do nome. Mesmo há pouco mais de vinte anos, o serviço das companhias aéreas, conquanto havendo decaído, não era dos piores. Na primeira viagem de avião que fiz, em 1952, o aparelho pinga-pinga escalou em Salvador e aí almoçamos no restaurante do aeroporto com todas as mordomias. Não havia o sobressalto de vôos cancelados ou overbooking. Fazia gosto. Bem diferente do tratamento que se dá hoje, com serviços de péssima qualidade. Pode-se chamar a isto de progresso? Na verdade, até mesmo as ligações aéreas entre cidades brasileiras pioraram. Não há mais alternativas fáceis de vôo do Recife a Maceió, por exemplo, como quando meu saudoso amigo e aluno Lycurgo Almeida, economista que ensinou na UFPE, viajava aos sábados (ia e voltava no mesmo dia) para dar aulas de macroeconomia na UFAL. Isto foi no fim dos anos 60. Certa vez, para vir de Teresina ao Recife, tive que tomar um vôo da capital do Piauí a Brasília e aí fazer conexão para o Recife. Outra vez, para chegar à capital piauiense, precisei primeiro ir a São Paulo. No entanto, nos anos 70, viajei muito em vôos que, sem mudar de avião, ligavam as duas cidades nordestinas. 

Visitar alguém em um prédio de apartamentos hoje, para mim, que moro em casa, é uma chateação. Tem-se que dar nome, conversar com pessoas ocultas atrás de grossos vidros escuros, ultrapassar uma série de barreiras. No Rio de Janeiro, nos anos 50, eu ia aos edifícios de meus colegas de colégio em Ipanema, Leblon, Copacabana – no Recife, eu não conhecia ninguém que morasse em espigões – sem nada que se interpusesse entre a rua e a porta dos apartamentos, mesmo nos prédios de maior luxo. Não me interessam as razões para isto. Elas próprias já indicam que vivemos num mundo pior. Com efeito, com menos de 18 anos de idade, meus amigos e eu voltávamos caminhando do cinema ou de festinhas pelas ruas do Rio de Janeiro, tarde da noite, sem medo de nada. Também no Recife, nos meus anos de estudante universitário, ficar de madrugada pela rua não causava medo. Nunca vi um assalto. Nunca me aconteceu nada de violento, nem a ninguém de minha convivência. Certamente, vivíamos num mundo melhor. Nos hotéis, telefonema local era gratuito, e mesmo assim os hotéis prosperavam, a exemplo do Glória, no Rio, onde estive várias vezes. Uma outra coisa que indica piora de qualidade de vida, sem nenhuma dúvida, é o generalizado uso de pratos, talheres, copos e xícaras de plástico. Esta praga, esta coisa feia, vulgar, medíocre, não é só dos aviões. Toma-se cerveja em copo de plástico em muita festa organizada. E até vinho! Refeições de boa qualidade em pratos do mesmo material – refeições de que fujo: prefiro ficar sem comer – ocorrem com frequência. No rumo desta deterioração da qualidade de vida, o que temos é “progresso” ao revés. Progresso enganoso. Uma mentira. 

Como lembra Antônio Cândido, a reflexão sobre a realidade social no pensamento latino-americano foi sempre marcada “pelo senso dos contrastes e mesmo dos contrários – apresentados como condições antagônicas em função das quais se ordena a história dos homens e das instituições”. Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, serve-se desta percepção para trabalhar a tipologia básica do livro, a qual distingue o “trabalhador” e o “aventureiro”, cada um com sua ética. A do primeiro valoriza a segurança e o esforço numa perspectiva de longo prazo. A do segundo se orienta pelo provisório e prefere a novidade. No dizer de Antônio Cândido, para quem os dois tipos não possuem existência real em estado puro, entre o trabalhador e o aventureiro “não há […] tanto uma oposição absoluta como uma incompreensão radical”. Em sua interpretação, o continente americano foi obra de aventureiros. Foi isto o que talvez tenha levado José Bonifácio de Andrada e Silva, em 1823, a escrever: “A Natureza fez tudo a nosso favor, nós, porém pouco ou nada temos feito a favor da Natureza […] Nossas preciosas matas vão desaparecendo, vítimas do fogo e do machado destruidor, da ignorância e do egoísmo. Nossos montes e encostas vão-se escalvando diariamente, e com o andar do tempo faltarão as chuvas fecundantes que favoreçam a vegetação e alimentem nossas fontes e rios, sem o que o nosso belo Brasil, em menos de dois séculos, ficará reduzido aos páramos e desertos áridos da Líbia”. Não falta muito para se constatar o vaticínio de Bonifácio. 

E não parece que o Patriarca tenha se equivocado na avaliação do ímpeto destruidor dos aventureiros, “sem apreço pelas virtudes da pertinácia”. Basta ver, por exemplo, como, hoje, 95-96% da Mata Atlântica já foram destruídos em Pernambuco; talvez mais. O que torna imperioso salvar o pedaço que dela resta e que continua sendo destruído todo dia. Na Região Metropolitana do Recife, inventou-se um projeto, chamado de Arco Viário, que inclui grande desflorestamento na Mata Atlântica de Aldeia. Sem qualquer sentido. Mas lutar em defesa do meio ambiente se mostra sempre uma temeridade entre nós: esforço inglório. Fazê-lo é ser contra a modernidade, contra o desenvolvimento, coisa de dinossauros – alega-se. Já em 1883, todavia, ninguém menos do que Joaquim Nabuco, no livro O Abolicionismo, afirmava: “A cada passo encontramos e sentimos os vestígios deste sistema que reduz um belo País tropical ao aspecto das regiões onde se esgotou a força criadora da terra”. É tal sentimento que leva segmentos importantes da comunidade a protestar contra absurdas formas de destruição do ambiente natural e construído no País. No contexto da tendência de afronta à natureza que caracteriza a história pátria, não espanta que ainda se queira mais deformação, como a da paisagem do Recife, por meio da construção de torres gigantescas como se previa insanamente no Cais José Estelita. Isto se propõe especialmente em áreas onde tais espigões destoariam completamente do ambiente, conspurcando a paisagem e confiscando-a de toda a população. Tudo para supostamente promover o bem-estar de meia dúzia de privilegiados à custa do patrimônio paisagístico, propriedade também das gerações futuras. Destrói-se a natureza, destrói-se a herança dos bens urbanos legados por gerações que souberam edificar igrejas barrocas, residências bonitas de todo tipo, inclusive casas de alvenaria na zona rural, pontes, arcos. Isso é caminhar para trás. Desfigurar o bairro de São José para a construção de torres que beneficiam elites poderosas ou plantar prédios enormes á beira do Capibaribe como se tem feito, beneficiando também a mesma classe social concentradora da riqueza e do poder, evidencia que nosso compromisso com o progresso nada tem a ver com a promoção da arte da vida em escala societária plena. Nesta perspectiva, caminhamos para trás. 

O escritor americano Henry Thoreau (1817-1862), autor do consagrado Walden ou A Vida nos Bosques, disse certa vez: “Graças a Deus que os homens ainda não podem voar, e arrasar o céu como têm feito com a terra!” É isto, de fato, o que acontece quando se faz a economia, o dinheiro, o acúmulo de bens materiais se orientarem não pelas necessidades da boa qualidade de vida, mas sobretudo tendo como bússola, aumentos impensados do lucro privado, da acumulação e da concentração de riqueza. E quando a publicidade induz os seres humanos a consumir de modo predatório, impondo o luxo e o supérfluo, em detrimento dos valores ambientais e da justa divisão da produção social. Tinha razão o grande intelectual cubano José Martí (1853-1895) quando pensava: “Não há batalha entre a civilização e a barbárie, e sim entre a falsa erudição e a natureza”. Ou entre o desejo de enriquecimento incontrolado e a harmonia dos seres e das coisas. Aprender que esta é a diretriz a ser seguida requer um processo que remete necessariamente à educação para o bom viver, para a promoção da felicidade. E na esfera da educação, se existem avanços no País, o certo é que à grande massa da população se oferece um tipo de formação que não fortalece o pensamento crítico, não ensina a falar e escrever corretamente, não leva a se usar com precisão os recursos da matemática. Nem a que se aprendam outros idiomas.

País rico, somos empobrecidos ainda mais pelo desvio de recursos públicos por meio dos mais diversos esquemas de corrupção que a mente brasileira consegue criar – impunemente. Diante de fatos deste quilate não se pode dizer que o Brasil progrida. Ele apresenta, sim, um quadro de atraso persistente e difícil de superar. O que impõe pensar em um choque de educação de grandes proporções nos próximos anos.