SUSPENSÃO TEMPORÁRIA PATENTES. “VACINAS PARA TODOS”

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Fatima Militão(APC cadeira #93)Lucia Melo (APC cadeira #66)

 

Em dezembro de 2020, menos de um ano após decretada a pandemia por Covid-19 pela Organização Mundial de Saúde – OMS, a vacinação contra a doença era iniciada em alguns países. Foi um resultado inusitado, pelo tempo recorde nos testes de segurança e eficácia, fruto de um investimento de risco, com muitas etapas envolvidas, desde a pesquisa básica e desenvolvimento até a pesquisa clínica, o que, em geral, demanda muito mais tempo. Atualmente são poucos os países que dispõem da infraestrutura adequada, e dos recursos financeiros e humanos para o desenvolvimento integral de medicamentos. 

A gravidade da pandemia, que avança em velocidade e extensão nunca vista, gerou um senso de urgência, mobilizando diversos agentes públicos e privados envolvidos com a questão, como governos, empresas e centros de pesquisa, em todo o mundo. À diferença do que ocorrera em outras pandemias, desta feita a Ciência se encontrava em condições excepcionalmente avançadas, fruto de desenvolvimento de pesquisa em empresas e universidades em novas tecnologias como a genômica, biotecnologia, tecnologia da informação e suas aplicações, de forma a permitir resultados céleres, tão necessários e urgentes frente à expansão da propagação da Covid-19. O aporte financeiro feito por alguns governos, o que envolveu inclusive assegurar compras antecipadas, viabilizou o surgimento de vacinas em tempo recorde: em menos de um ano, já existiam várias vacinas sendo aplicadas nos principais países desenvolvidos.

Recursos públicos na faixa entre U$2,2 e U$4,1 bilhões foram investidos pela Alemanha, Reino Unido e os Estados Unidos, com este propósito1. Para se ter um parâmetro dessa evolução acelerada, vale considerar que a vacina contra o Ebola, por exemplo, levou cinco anos para ser disponibilizada2, ao seguir os protocolos de testagem atuais. 

No caso da Covid-19, mais uma vez fica evidenciada a importância do papel do Estado no fomento a atividades de alto risco na pesquisa e inovação, envolvendo empresas e entidades públicas. Infelizmente, esta garantia de compra não ocorreu nos países pobres e em desenvolvimento, nem naqueles cujos governos não se mostram atentos e afinados com a ciência. Além disto, questões relacionadas à propriedade intelectual e de patentes podem representar importante obstáculo para o acesso universal às vacinas desenvolvidas. Algo precisa ser feito quanto a isto.

E, no entanto, o controle da doença é uma questão que interessa ao mundo todo, dado que as variantes já identificadas no Reino Unido, África do Sul e Brasil mostram que a pandemia só será controlada com a vacinação global. Porém, a Organização Mundial do Comércio, WTO, não pensa assim, e já bloqueou iniciativa da Índia e África do Sul que procurava suspender temporariamente as patentes das vacinas. O Brasil não esteve alinhado com essa proposta. Isto nos faz lembrar de outra pandemia, a da Aids, quando o Brasil teve um protagonismo importante na quebra das patentes dos antirretrovirais3, que passaram a ser produzidos no País, o que ajudou a transformar a Aids de uma pandemia letal em uma doença crônica controlável.

Infelizmente, a tradição brasileira em promover o desenvolvimento e a competência local (pública e privada) na produção de medicamentos esteve comprometida desde que o País (diferentemente de outros, como a Coreia do Sul, por exemplo) aderiu ao acordo internacional de propriedade intelectual – TRIPS, adotando novas restrições mais severas, impostas à exploração comercial de patentes, com a  antecipação de oito anos em relação ao que era estabelecido pela WTO (2005), o que veio a comprometer nosso parque industrial já existente e o desenvolvimento de uma indústria farmacêutica moderna.

Na verdade, até o momento, não há vacinas em quantidade suficiente no mundo, e o grande esforço feito tem sido para aumentar a capacidade de produção nas instalações das empresas desenvolvedoras, seja por meio de contratos, como o acordo da vacina de Oxford/AstraZeneca com o Serum Institute of India e Fundação Oswaldo Cruz, e da Coronavac desenvolvida pela empresa Sinovac Life Science Co., LTD (China) no Brasil. A OMS já alertou, se os países não puserem em prática a solidariedade que alardeiam existir, “o mundo estará à beira de um fracasso moral catastrófico – e o preço desse fracasso será pago com vidas e meios de subsistência nos países mais pobres do mundo4”. O Brasil, até agora com apenas 7,5% de sua população com pelo menos uma dose de vacina, já está pagando com quase 300.000 mortes a irresponsabilidade de seu governo federal no planejamento de medidas de controle da pandemia, incluindo a compra de vacinas, e está à beira do caos sanitário. 

A capacitação brasileira já estabelecida na produção e desenvolvimento de vacinas e outros produtos, além da grande competência cientifica existente, do que são exemplos a Fiocruz e o Instituto Butantã, conferem ao País condições diferenciadas de se tornar um importante provedor desses imunizantes para diversas regiões especialmente a América Latina. De acordo com especialistas1, se as patentes fossem temporariamente suspensas, empresas de todo o mundo poderiam rapidamente reequipar sua capacidade de manufatura e, mediante transferência de tecnologia, passariam a produzir essas vacinas em vários países. Esta seria a demonstração mais concreta de que a pandemia chegou de fato a mudar a ordem do mundo.

A adoção do “licenciamento compulsório” por meio do qual governos fornecem aos seus cidadãos versões genéricas de tratamentos/vacinas patenteados por meio da produção nacional ou importação estrangeira – o que é previsto pela legislação internacional em situações de emergência de saúde pública, como é o caso da pandemia Covid-19, poderia ser a solução. O caso do antirretrovirais para a AIDS pode vir a servir de inspiração do que é possível fazer. 

Para isto, são necessárias etapas regulatórias e o acompanhamento jurídico necessário, mas antes disto, uma mobilização social, que já foi iniciada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (CEBES) e Rede Unida para o enfrentamento da COVID-19 5.

É tempo então da Academia Pernambucana de Ciências encampar este movimento em defesa de Vacinas para todos!

Referências Bibliográficas:

  1. Bozorgmehr, K.; Jahn, R.; Stuckler, D.; McKee, M. Correspondence. Lancet Published Online March 18, 2021 https://doi.org/10.1016/ S0140-6736(21)00467-04.Wong H. The case for compulsory licensing during COVID-19. J Glob Health 2020; 10: 010358.
  2. Wolf, J; Bruno, S; Eichberg, M.; Jannat, R.; Rudo, S.; Van Rheenen, S.; Coller, B. A. Applying lessons from the Ebola vaccine experience for SARS-CoV-2 and other epidemic pathogens. NPJ Vaccines. 2020 Jun 15;5(1):51. doi: 10.1038/s41541-020-0204-7. PMID: 33580080. 
  3. Ford, N.; Wilson, D.; Costa Chaves, G.; Lotrowska, M.; Kijtiwatchakul, K. Sustaining access to antiretroviral therapy in the less-developed world: lessons from Brazil and Thailand. AIDS. 2007 Jul;21 Suppl 4:S21-9. doi: 10.1097/01.aids. 0000279703.78685.a6. PMID: 17620749. 
  4. WHO Director-General’s remarks at 148th Session of the Executive Board (18/01/2021) – https://www.who.int/director-general/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-148th-session-of-the-executive-board  
  5. SBB&Patent. Position of the Brazilian Society of Bioethics (SBB), the Brazilian Association of Collective Health (ABRASCO), the Brazilian Center for Health Studies (CEBES) and the United Network (Rede Unida) for the not patenting of products developed to confront COVID-19. 10Mar21